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INDISCUTÍVEL NATUREZA MILITAR

Quando em meados da década de noventa, os partidos de esquerda lançaram uma forte campanha contra a natureza militar da Guarda Nacional Republicana (GNR), inteligentemente direccionada para os seus elementos mais estruturantes, como sejam os decorrentes dos princípios da hierarquia e da disciplina, um dos principais cavalo de batalha utilizado, foi precisamente o da não manutenção da aplicação do Regulamento de Disciplina Militar (RDM), aos militares da Guarda.

A GNR é indiscutivelmente uma força militar. [1]

O Tribunal Constitucional acaba de clarificar a indiscutível natureza militar da GNR e da condição militar dos seus membros.

Em defesa desta tese, foram esgrimidos vários argumentos, entre eles, os de que o RDM estaria desactualizado e o de que a sua aplicação aos militares da GNR, seria inconstitucional, em virtude de nele constarem medidas privativas da liberdade, leia-se as penas de “detenção ou proibição de saída” e as de “prisão disciplinar”.

Ora se quanto ao primeiro argumento, todos estariam de acordo, a verdade é que se o RDM estava desactualizado, está-lo-ia para todos os militares, das Forças Armadas e da GNR, então a solução seria o da sua actualização para todos e não o da sua desaplicação, apenas aos militares da Guarda.
Por aqui se vê que as verdadeiras razões eram outras. O RDM na sua versão de 1977, subsistiu cerca de uma dúzia de anos mais, desde que estes factos ocorreram.

Já quanto ao segundo argumento, o governo da altura (1999), através de um muito hábil MAI, com grande peso político, apoiado numa forte campanha dos media, fez-nos crer que a declaração de inconstitucionalidade das normas do RDM, aplicadas à GNR, estaria eminente e se tal sucedesse, a Guarda ficaria desprovida de um regulamento disciplinar, pelo que urgia resolver o problema, através da rápida publicação de um novo regulamento de disciplina, o que acabou por acontecer com a publicação da Lei nº145/99, de 1 de Setembro.

Vem toda esta história a propósito do Acordão nº 54/2012, Procº 793/11, do Tribunal Constitucional, publicado na II série do DR do passado dia 14 de Março, a respeito precisamente, da não declaração de inconstitucionalidade da aplicação de uma pena de 10 dias de detenção, a um militar da Guarda, nos termos do RDM.
Pela importância de que se reveste a fundamentação jurídica, para a clarificação da indiscutível natureza militar da GNR e da condição militar dos seus membros, transcrevem-se extractos do citado Acordão:
II – Fundamentos. – 4 – Discute-se no presente processo a constitucionalidade da aplicação de penas disciplinares privativas da liberdade a membros da Guarda Nacional Republicana que resultava da sujeição dos militares da Guarda ao Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 142/77, de 9 de Abril, com as alterações decorrentes do Decreto -Lei n.º 434 -I/82, de 29 de Outubro.”. “No caso, o arguido foi punido com a pena de 10 dias de detenção, pena esta prevista no artigo 26.º do RDM. Consequentemente, o objecto do presente recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade são as normas constantes do artigo 92.º da LOGNR, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho, e do artigo 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Militares da Guarda, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 256/93, de 31 de Julho, na parte em que tornam aplicáveis aos militares da GNR a pena disciplinar de detenção, prevista no Regulamento de Disciplina Militar. A sua natureza de pena privativa da liberdade não oferece dúvidas. Quem a sofre fica confinado às instalações do aquartelamento a que está adstrito (ou que lhe seja destinado para cumprimento da pena), ficando-lhe coartada a faculdade eundi et ambulandi que integra o direito à liberdade e segurança”.
“6 – Ninguém pode ser total ou parcialmente privado deste direito, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medidas de segurança (n.º 2 do artigo 27.º da CRP). O n.º 3 do artigo 27.º autoriza excepções a este princípio. Entre elas, figura a “prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente”, nos termos da (actual) alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º que, na numeração anterior à revisão constitucional de 1997 constituía a alínea c) do mesmo n.º 3 do artigo 27.º.”
“8 – Mais controversa se apresenta a questão da delimitação da noção de militares para efeitos da excepção prevista no n.º 3 do artigo 27.º da Constituição [alínea c) desse preceito constitucional, na redacção vigente ao tempo da edição das normas em causa; alínea d) do mesmo preceito, na redacção vigente quer no momento da aplicação da sanção, quer actualmente).Pelas razões já referidas, não sofre dúvidas que a pena disciplinar de detenção cabe (materialmente) na autorização para impor pena de “prisão disciplinar”. É um minus como pena detentiva, relativamente à prisão disciplinar ou à prisão disciplinar agravada (Note -se, todavia, que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (acórdão ENGEL) não considera que, no contexto característico da organização e actividade militar, uma medida disciplinar desta natureza (light arrest) constitua privação da liberdade para efeitos do artigo 5.º da Convenção – Cfr. Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., pg. 39).

Assim, o que importa averiguar é se os “militares” a quem pode ser impostas penas desta natureza são, apenas, os membros dos três ramos das Forças Armadas (Exército, Marinha, Força Aérea) ou, também, os membros de outros corpos sujeitos, segundo a lei ordinária, à condição militar. O recorrente invoca, a favor da interpretação mais restrita do âmbito subjectivo de aplicação da excepção, argumentos de natureza histórica e sistemática. Portugal formulou uma reserva ao texto da CEDH no sentido de o respectivo artigo 5.º não obstar à prisão disciplinar imposta a militares em conformidade com o Regulamento de Disciplina Militar [artigo 2.º, alínea a), da Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro].”
“Com efeito, não podia ignorar-se que a GNR foi, desde sempre, concebida e organizada como um “corpo especial de tropas” e que os seus membros eram (e são) qualificados expressamente como “militares” e sujeitos à condição militar”.
“O essencial do problema consistirá, pois, em discernir que elementos das atribuições ou da organização de uma instituição podem justificar um direito sancionatório público tão gravoso para o direito fundamental da liberdade. Procedendo por aproximação, porque a opção constitucional de que para os três ramos das Forças Armadas essa especial sujeição é justificada (os membros das Forças Armadas são “candidatos positivos” ao conceito constitucional de “militar” constante da excepção do artigo 27.º), importa discernir que elementos podem levar a que se consinta a sujeição dos militares da Guarda a um regime disciplinar idêntico (no aspecto considerado) ao dos membros das Forças Armadas. Identificando os aspectos organizatórios e funcionais desta força de segurança que permitem a assimilação do regime de justiça e disciplina dos seus membros (no aspecto considerado) ao dos militares das Forças Armadas, disse -se no Acórdão n.º 521/03: «E seguidamente o mesmo Acórdão [Ac. n.º 183/87] identifica como notas características que, decerto, avultam na instituição militar:”
“- O estrito enquadramento hierárquico dos seus membros, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos;
– Correspondentemente, a subordinação da actividade da instituição (e, portanto, da actuação individualizada dos seus membros), não ao princípio geral da direcção e chefia comum à generalidade dos serviços públicos, mas a um peculiar princípio de comando em cadeia, implicando um especial dever de obediência;
– O uso de armamento (e armamento com características próprias, de utilização vedada aos cidadãos e aos agentes públicos em geral) no exercício da função e como modo próprio desse exercício;
– O princípio do aquartelamento, ou seja, o agrupamento dos seus agentes em unidades de intervenção ou operacionais dotadas de sede física própria e de um particular esquema de vida interna, unidade a que os respectivos membros ficam em permanência adstritos, com prejuízo, para a generalidade deles, da possibilidade (e do direito) de utilização da residência própria;
– A obrigatoriedade, para os seus membros, do uso de farda ou de uniforme;
– A sujeição dos mesmos a particulares regras disciplinares e, eventualmente, jurídico -penais”.
“Anote-se, de resto, que esta é, também, a exacta compreensão que o legislador infraconstitucional tem dos índices característicos da condição militar. Na verdade, ao legislar sobre as bases gerais do estatuto da condição militar, diz a referida Lei n.º 11/89, de 1 de Junho:
Artigo 2.º
A condição militar caracteriza -se:
a) Pela subordinação ao interesse nacional;
b) Pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida;
c) Pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra;
d) Pela subordinação à hierarquia militar, nos termos da lei;
e) Pela aplicação de um regime disciplinar próprio;
f) Pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais;
g) Pela restrição, constitucionalmente prevista, do exercício de alguns direitos e liberdades;
h) Pela adopção, em todas as situações, de uma conduta conforme com a ética militar, por forma a contribuir para o prestígio e valorização moral das forças armadas;
i) Pela consagração de especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação».

“É de observar que o artigo 16.º da mesma lei determina que ela se “aplica aos militares da Guarda Nacional Republicana”.

“12 – Ora, tomando inteiramente por bons estes parâmetros, há que convir que todos eles se verificam relativamente à Guarda Nacional Republicana, quer na legislação do tempo (atrás identificada, tal como os seus preceitos mais relevantes) em que foram aditados a alínea c) do n.º 3 do artigo 27.º e o artigo 270.º da CRP, quer na legislação actual [Decreto -Lei n.º 231/93, de 26 de Junho, maxime, artigos 1.º, 9.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, 12.º, 13.º, 18.º, 21.º, 22.º, 23.º, 31.º, 32.º, 63.º a 72.º, e Decreto -Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, maxime, artigos 1.º, 2.º, 5.º, 6.º, 7.º, 9.º, 14.º, 16.º, 23.º e 24.º], quer na realidade física existente em cada um desses diferentes momentos. A este propósito basta lembrar as tarefas de índole militar que constantemente são atribuídas à GNR. Na verdade, à face de tal legislação a Guarda Nacional Republicana sempre foi definida como sendo uma força de segurança constituída por militares organizada num corpo especial de tropas (artigos 1.º da LOGNR e 1.º a 4.º do EMGNR). Uma tal definição adquire, desde logo, a característica verdadeiramente determinante dos militares das Forças Armadas que é a de serem um corpo de tropas, cuja função primordial é a “defesa militar da República”. E se é certo que as atribuições daquele corpo especial de tropas são, predominantemente, funções de autoridade de segurança, de polícia criminal, de polícia fiscal e de controlo da entrada e saída de cidadãos nacionais e estrangeiros do território nacional, não o deixa, também, de ser que, entre elas, se conta, igualmente, a de colaborar na execução da política de defesa nacional (artigo 2.º da LOGNR). Por outro lado, constata-se que essas suas atribuições são levadas a cabo mediante um esquema organizatório que é decalcado totalmente do que se verifica em relação aos militares das Forças Armadas. Assim, os seus membros estão organizados, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos (artigos 24.º e 26.º do EMGNR e 51.º e 90.º do EMGNR). O pessoal está distribuído por “Armas” e “Serviços” e organizado por unidades de comando, de instrução, de brigadas (unidades territoriais), brigada especial de trânsito, brigada especial fiscal, unidades de reserva, estas constituídas por um regimento de cavalaria e um regimento de infantaria (artigos31.º e 63.º da LOGNR). A regra de subordinação das suas tropas no desempenho da sua actividade institucional assenta num princípio de comando em cadeia, segundo as diferentes patentes e postos (artigos24.º e 26.º do EMGNR e 35.º do EMGNR). Os militares da Guarda Nacional Republicana usam, para além de armamento ligeiro, armamento pesado de características militares, como sejam, entre outros, carros de combate, ligeiros e pesados, granadas e metralhadoras ligeiras e pesadas (artigo 21.º da LOGNR). Nota-se, ainda, que os militares da GNR, no activo, estão agrupados em unidades de intervenção e unidades operacionais, pela forma acima apontada e toda a sua acção é desenvolvida, essencialmente, a partir dessas sedes de comando (artigos 35.º a 62.º da LOGNR). Por outro lado, essas unidades estão aquarteladas em locais – quartéis -, e os militares da GNR estão adstritos, em permanência, a eles, cumprindo regras específicas de vida interna, próprias de um corpo de tropas. Finalmente, os seus membros usam farda ou uniforme, cumprindo algumas das suas espécies a mesma funcionalidade dos uniformes das Forças Armadas, como os trajes de combate e assalto (artigo 21.º da LOGNR). Por último, os militares da GNR sempre estiveram sujeitos às regras disciplinares do Regulamento de Disciplina Militar, e, no domínio penal, ao Código de Justiça Militar (Lei de 3 de Maio de 1911, Decreto -Lei n.º 33 905, de 2 de Setembro de 1944, Decreto -Lei n.º 333/83, de 14 de Julho e artigos 92.º e 93.º da LOGNR e 5.º do EMGNR).Mantém-se este entendimento, que foi também o seguido pelo acórdão recorrido.Com efeito, a GNR, além das atribuições policiais que de ordinário lhe competem, pode ser chamada a desempenhar tarefas que consistem na aplicação extrema da força do Estado e no controlo da violência, o que justifica a sua organização militarizada e o estatuto militar dos seus agentes. Desde sempre legalmente definida como tendo natureza militar, cabia e cabe na sua missão geral colaborar na execução da política de defesa nacional nos termos da Constituição e da lei, podendo em caso de guerra ou em situação de crise as forças da Guarda ser chamadas a cumprir, em colaboração com as Forças Armadas, as missões militares que lhe forem cometidas (cf. artigos 2.º, alínea i) e 9.º, n.º 2, da LOGNR aprovada pelo Decreto -Lei n.º 231/93 e artigo 1.º, n.º 2 e 3.º, n.º 2, alínea i) da actual LOGNR). Acresce que, embora dependentes do membro do Governo responsável pela área da administração interna, as forças da Guarda podem ser colocadas na dependência operacional do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, através do seu comandante-geral, nos casos e termos previstos nas Leis de Defesa Nacional e das Forças Armadas e do regime do estado de sítio e do estado de emergência, dependendo, nesta medida, do membro do Governo responsável pela área da defesa nacional no que respeita à uniformização, normalização da doutrina militar, do armamento e do equipamento. E é para assegurar a disponibilidade e prontidão nesses domínios que se adequa a organização militarizada desta força de segurança interna como “corpo de tropas” e a condição militar dos seus agentes e se pode, à face da Constituição, exigir deles a sujeição a um mais rígido estatuto disciplinar do que o aplicável à generalidade das forças de segurança, considerando-os incluídos no conceito constitucional de “militar” para efeitos da excepção prevista na alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição.”

Aqui chegados e desfeita a tese da inconstitucionalidade, cumpre colocar duas questões:

Quais seriam as verdadeiras razões que levaram o governo em 1999, a desaplicar o RDM aos militares da GNR e a substitui-lo por um regulamento em que as penas detentivas, foram substituídas por pecuniárias?

E se aos militares da Guarda fosse perguntado, se preferiam ser punidos com uns dias sem poder sair do quartel ou ficar sem dois terços do vencimento por igual período, qual seria a resposta?

Lisboa, 18 de Março de 2012
Carlos Manuel Gervásio Branco, coronel

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