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UMA EXPLICAÇÃO SOBRE A QUESTÃO DAS REFORMAS DOS MILITARES

Por • 24 Jul , 2016 • Categoria: 02. OPINIÃO Print Print

Ao contrário do que a MAI (Ministra da Administração Interna) vem afirmando, a não aplicação do Decreto-Lei nº 214-F/2015, de 3 de Outubro – clarificação do regime transitório de reserva e reforma dos militares da GNR – Decreto-Lei nº159/2005 e Decreto-Lei nº 297/2009 –  não é um problema de interpretação jurídica, mas sim o resultado de uma vontade política da sua não aplicação, que vai mais fundo e pretende retirar o estatuto da condição militar aos militares da GNR, sem nunca o assumir, nem ter legitimidade política para o fazer, uma vez que o programa do Governo, nada diz a este respeito.

A dupla dependência da GNR teima em não estar devidamente esclarecida e regulada.

A Guarda Nacional Republicana é uma força de segurança de natureza militar, constituída por militares organizados num corpo especial de tropas.

Nota prévia do Operacional:

O texto que se segue foi escrito e teve circulação restrita no meio militar, muito antes das notícias publicadas no “Diário de Notícias”, em de 22 de Julho, e que trouxeram este assunto ao grande público. Na realidade esta questão das “reformas dos militares”, tantas vezes mal compreendidas e apresentadas publicamente de modo truncado e demagógico, levaram Carlos Gervásio Branco a escrever este documento que julgamos muito bem fundamentado, completo e esclarecedor mesmo para quem não domina a matéria. Uma síntese, limitada ao espaço disponível, foi aliás publicada no “Diário de Notícias”, com o título “Um Atentado à Condição Militar“. Agora, a pedido do Operacional, publicamos o documento original na íntegra, com links para a legislação relevante e anexos certamente inéditos para a maioria dos leitores. Carlos Branco, coronel da GNR na Reserva, colaborador de longa data do Operacional, estudioso e autor com obra publicada sobre a Guarda, escreveu como para uma “circular interna”, mais preocupado com a informação nele contida e menos na forma.

 

UMA EXPLICAÇÃO SOBRE A QUESTÃO DAS REFORMAS DOS MILITARES

1º-Ao contrário do que a MAI (Ministra da Administração Interna) vem afirmando, a não aplicação do Decreto-Lei nº 214-F/2015, de 3 de Outubro (clarificação do regime transitório de reserva e reforma dos militares da GNR – DL nº159/2005 e DL nº 297/2009), não é um problema de interpretação jurídica, mas sim o resultado de uma vontade política da sua não aplicação, que vai mais fundo e pretende retirar o estatuto da condição militar aos militares da GNR, sem nunca o assumir, nem ter legitimidade política para o fazer, uma vez que o programa do Governo, nada diz a este respeito.

Esta ilação deve-se não só à análise deste problema, mas da sua conjugação com os preceitos contidos no projecto de estatuto dos militares da GNR, elaborado pelo MAI(*) e das próprias declarações em sede de audição parlamentar (**), donde é manifesto o desrespeito pela condição militar e o seu afastamento dos outros militares (FFAA – Forças Armadas).

2º- Se fosse uma questão de interpretação, haveria métodos jurídicos para suprir tal facto, como por exemplo, o recurso a um parecer do Conselho Consultivo da PGR.

3º- A verdadeira questão parece ser outra. A MAI entende que a GNR e a PSP devem ser iguais e tem dificuldade em aceitar e respeitar, a condição militar dos militares da GNR.

4º- Para resolver um problema da PSP e a pretexto deste, a MAI tem confundido a opinião pública com as reformas da GNR, dando a entender tratar-se do mesmo assunto, o que é totalmente falso, mas que na sua visão deveriam ter um regime igual – vide declarações suas na AR, link abaixo em nota (**).

5º- Na PSP, de acordo com a lei em vigor, as pensões de aposentação (nos militares designam-se por reforma), tal como as dos demais funcionários públicos, sofrem as penalizações decorrentes do factor de sustentabilidade (13%) e de 6% por cada ano de antecipação da idade legal para aposentação (66 anos e 2 meses), donde que para ultrapassar estas penalizações, é necessário alterar a lei.

6º- Na GNR, pelo contrário, é a lei em vigor (214-F/2015) que não está a ser aplicada, prejudicando os seus militares com um cálculo das pensões que não é o aplicável a militares, donde não ser necessário alterar a lei, mas sim aplica-la.

7º Com essa sua atitude a MAI e o Governo por seu intermédio, mostra um desprezo por princípios básicos de um Estado de Direito como sejam o respeito pela legalidade e o da segurança jurídica que o Estado deve prosseguir.

8º- Sintetizando, na GNR não se quer aplicar a lei, penalizando os militares, na PSP para beneficiar os polícias, é preciso alterar a lei.

9º- A acrescer a este quadro, e por forma a tornar a questão de base menos evidente ou aproveitando o ensejo, o Governo prepara-se para alterar o regime de reforma dos militares (Forças Armadas e GNR), uniformizando-o com uma série de outros servidores públicos – Agentes com funções policiais da PSP; Polícia Marítima; Pessoal militarizado da Marinha; Pessoal militarizado do Exército; Pessoal do corpo da Guarda Prisional, com os quais os militares não têm afinidades, e cujos regimes estatutários sempre foram diferentes entre si e diferentes do estatuto da condição militar – ver Projecto do Regime de Reforma dos Militares das Forças Armadas, em nota (***).

10º- Donde, o regime de “reforma” dos militares, obrigatoriamente antecedido da situação de reserva, nunca teve paralelo com o regime de “aposentação” dos policias ou de outros servidores o Estado, constituindo uma situação diferente, tal como sucede com os magistrados e os diplomatas, com a “jubilação”.

Não é por acaso que as designações entre estas várias situações também são diversas.

11º- Com o falso argumento do “tratamento igualitário”, pretende-se tratar da mesma forma o que realmente é diferente, o que transforma o igualitário em desigual, retirando as penalizações nas pensões de todos os que são abrangidos pelo projecto e reduzindo as dos militares.

12º- A desconsideração pela condição militar, com todos os ónus e restrições que lhe estão inerentes, aliado ao desprezo atribuído à situação de Reserva (que no projecto nem sequer é abordada) e constitui uma situação exclusiva dos militares, sem a qual não se pode aceder à reforma e que não se pode comparar com a pré-aposentação, são bem demonstrativas do tratamento que o Governo pretende dar aos militares nesta matéria.

13º- Argumentar-se que a Reserva é o mesmo que a pré-aposentação, é querer confundir duas realidades cuja ratio e efeitos são totalmente diferentes.

Enquanto a reserva, constitui um direito que é simultaneamente um ónus, porque, para além da possibilidade dada ao militar de se retirar do serviço efectivo, desde que preenchidos determinados pressupostos (idade e tempo de serviço), constitui igualmente um ónus que impossibilita os militares de por exemplo, transitar directamente do activo para a reforma, situação que não tem paralelo nos demais funcionários do Estado, que, mesmo com penalizações, podem requerer a aposentação antecipada.

Já a pré-aposentação não é um direito, mas sim uma concessão para a qual o interessado se habilita. Para a reserva pelo contrário, os militares são obrigados a transitar, mesmo contra sua vontade, se, por exemplo, forem ultrapassados na promoção, atinjam os limites de idade nos diversos postos, para além de outras situações exclusivas da carreira militar e da Instituição Militar.

14º– Argumentar-se que a condição militar é similar a condição policial, é outra falácia.

Começando pela condição militar, cujo fundamento legal se encontra numa lei da Assembleia da República (Lei nº 11/89, de 1 de Junho – Lei de Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar), aplicável exclusivamente aos militares (FFAA e GNR).

Ao conceito de “condição”, que no caso vertente se adjectiva de militar, tal como o próprio nome indica, é mais do que uma função, tem um âmbito de aplicação muito mais abrangente, tem uma natureza própria que de modo claro e indiscutível, se distingue do estatuto funcional dos demais servidores do Estado.

Desde logo pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida;

Pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares;

Pela permanente disponibilidade para o serviço,seja em termos temporais (não há horários de trabalho, nem regimes compensatórios por serviço em domingos e feriados),seja em termos de mobilidade geográfica, ainda com o sacrifício de interesses pessoais do militar e da família;

Pela restrição de alguns direitos e liberdades;

Pela fixação de princípios muito próprios alicerçados em valores que ultrapassa a mera questão funcional e repercute-se sobre os seus destinatários em todos os planos da sua vida, mesmo o da vida privada; daí os regulamentos disciplinares serem diferentes nos respectivos âmbitos de aplicação e graus de exigência, para além de aos militares se aplicar, ainda, um direito criminal próprio, onde se inscrevem os crimes essencialmente militares, onde por exemplo o abandono do serviço o a sua falta, implica o cometimento de um crime, o que não sucede com mais nenhum servidor do Estado, nem com os polícias.

Pelo contrário, a recente criação do termo “condição policial” no novo estatuto da PSP (DL nº 243/2015, de 19 de Outubro), ajustando de forma mitigada e menos exigente (não se exigem os mesmos sacrifícios que aos militares), algumas das regras da condição militar a uma outra realidade, e apenas abrangendo os elementos daquela Polícia, é demonstrativo da limitação do termo, dado o mesmo não ser extensivo aos restantes agentes policiais de outras polícias, que apesar de não se poderem integrar neste conceito, não deixam de exercer a função policial.

Em bom rigor, aquilo a que se apelidou “condição policial” não passa de uma “função policial”, como aliás sucede noutros países.

“Função” é, por consequência, diferente de “condição”, como prova o facto de aos militares da GNR se aplicar o Estatuto da Condição Militar, apesar de, concomitantemente, para além das missões militares que lhes estão legalmente atribuídas, exercerem funções policiais.

Enquanto à condição militar é possível atribuir funções policiais, para além das próprias funções militares, como o demonstram todas as “gendarmeries”, à condição policial não é possível atribuir funções militares, porque aquela não é realmente uma condição, mas tão só uma função.

15º- E ainda na mesma linha de raciocínio que a MAI vem argumentando, não se podem equivaler os conceitos de disponibilidade dos polícias e dos militares.

Enquanto os primeiros têm uma disponibilidade condicionada pelo próprio horário de trabalho e por muitos outros direitos e onde não figura qualquer preceito que exija o “sacrifício de interesses pessoais”, a disponibilidade dos militares é total, mesmo com o sacrifício de interesses pessoais, quer em termos temporais, quer em termos geográficos, sem quaisquer limitações para lutar em defesa da Pátria, mesmo com o sacrifício da própria vida, consequência da sua condição militar.

Seria abusivo pois querer equivaler estes dois tipos de disponibilidade.

Notas:

A partir do momento em que os militares da GNR dispuserem de um “horário de trabalho”, à semelhança do que sucede com os polícias ou outros trabalhadores, a questão da disponibilidade terá que ser reequacionada e eventualmente, a própria condição militar.

Até pode ser que tenha sido esta a razão porque a MAI se mostrou tão empenhada na publicação de um “horário de referência”para a GNR (Portaria 222/2016, DR de 22 de Julho, 2ª série).

Lisboa, 23 de Julho de 2016

Carlos Manuel Gervásio Branco, Coronel (Res)

(*) Ver aqui : Projecto de Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana

(**) Audição da Ministra da Administração Interna na COMISSÃO DE ASSUNTOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS, em 12 – Julho – 2016. Nota do Operacional: Foi também nesta audição que a MAI declarou: «…A minha posição neste momento é a seguinte, não há razão para fazer distinções, aliás o EMFAR (Estatuto dos Militares das Forças Armadas), não a faz, ou seja, acho que aí deve haver um alinhamento com o EMFAR, não fazer distinções, a questão, a magna questão, de ser absolutamente necessário ter que passar pela Academia Militar para chegar a general, o próprio EMFAR não o exige, e o general Spínola foi general e nunca passou pela Academia Militar, portanto não foi isso que o impediu de ser general, não tem nenhuma licenciatura em ciências, portanto isso, acho que nestas questões pode haver aqui um alinhamento….». No mínimo já devia ter seguido um pedido de desculpas à Família do senhor general e à Academia Militar. Esperemos que a MAI possa vir a visitar a Academia Militar e a inteirar-se “in loco” sobre um assunto que manifestamente desconhece e disso deu pública prova.

(***) Projecto do Regime de Reforma dos Militares das Forças Armadas

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