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TENSÃO SOBRE A IEBL*

Por • 23 Mar , 2009 • Categoria: 05. PORTUGAL EM GUERRA - SÉCULO XX Print Print

Nota: Este artigo está escrito desde a data dos acontecimentos

A actuação das tropas da IFOR, no âmbito da operação “Joint Endeavour”, reveste-se de alguns aspectos pouco vulgares, para os quais as unidades de combate não estão vocacionadas, equipadas e treinadas. Mas, apesar disso, têm de actuar. A realidade no terreno obriga a IFOR, nomeadamente o 2º Batalhão de Infantaria Aerotransportado, a agir perante grupos organizados de civis. De modo dissuasor, as nossas forças já estiveram colocadas entre populares “desarmados”. Por uma vez, junto a Gorazde, a presença ostensiva dos “páras” portugueses, fortemente armados e com uma grande dose de paciência, foi suficiente.


As Chaimites do 2º BIAT tiveram um papel importante para dissuadir o eclodir do conflito entre Sérvios e Muçulmanos em 30 de Abril de 1996

As Chaimites do 2º BIAT tiveram um papel importante para dissuadir o eclodir do conflito entre Sérvios e Muçulmanos em 30 de Abril de 1996

Liberdade de movimentos

É este aspecto, o qual está bem expresso nos Acordos de Paz, que as facções no terreno têm explorado de modo a tirar dividendos políticos, forçando muitas vezes a intervenção das forças da IFOR. De facto, a liberdade de movimentos na Bósnia-Herzegovina, nomeadamente no sector do 2º BIAT, não é absoluta. Pese embora o facto de, em poucos meses, a situação se ter alterado substancialmente, também é verdade qe ainda se está longe da pretendida liberdade de movimentos entre a Federação da Bósnia-Herzegovina e a República Srpska. É que antes da chegada da IFOR, mesmo as forças militares da FORPRONU (Força de Protecção das Nações Unidas) e os observadores militares da ONU e EU não tinham essa liberdade de movimentos. Muito menos as organizações humanitárias e a imprensa, por exemplo. Nos dias de hoje, para além da IFOR, que tem total liberdade de movimentos, todas as inúmeras organizações internacionais que trabalham no terreno deslocam-se sem escolta nas estradas da Bósnia-Herzegovina. Também a imprensa, embora aqui já com limitações pontuais, circula livremente e sem necessidade de escolta militar ou policial.

Mas as populações de ambos os lados não se atrevem a passar a IEBL sem escolta. E aqui começam os problemas. As organizações humanitárias, a quem está atribuída a responsabilidade de tratar dos movimentos de populações civis, nomeadamente refugiados que pretendem regressar às suas regiões de origem, apenas podem agir com base em negociações – sempre demoradas – entre as partes. Quando, finalmente, se consegue um acordo, para efectuar uma determinada “passagem da IEBL” num qualquer local, cabe às policias de ambas as facções, monitorizadas pela Policia Civil da ONU (IPTF – International Police Task Force), garantir a normalidade desse acto. Tem acontecido que, regra quase geral, as autoridades de ambas as facções concordam na mesa das negociações, mas, misteriosamente, no dia da “passagem” manifestações “espontâneas” bloqueiam as estradas. Resultado: A IPTF, que no terreno contacta com as forças policiais de ambas as facções, pede apoio à IFOR no sentido de garantir a segurança dessa mesma IPTF – e a IFOR em toda a Bósnia-Herzegovina garante o ambiente de segurança considerado adequado para a IPTF poder levar a cabo a sua missão – e assim vemos militares e meios de combate da Força de Implementação da OTAN envolvidos num cenário que, à partida, não era o da sua previsão de emprego.

No centro da "terra de ninguém" com as populações e policia sérvia ao fundo

No centro da "terra de ninguém". Em fundo a igreja do cemitério da discórdia com a população e polícia sérvia prontos para bloquear a estrada

Gorazde/Kopaci, 30 de Abril de 1996

Esta foi a data escolhida por um grupo de civis, muçulmanos, de Gorazde, para visitar um cemitério na vizinha povoação de Kopaci. Acontece que esta última localidade está “do outro lado da IEBL”, ou seja, está em território habitado por sérvios.

Negociações efectuadas nos dias anteriores, sob a égide da UNHCR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), organismo que tem a seu cargo a organização deste tipo de actividades envolvendo movimentos de populações, haviam reunido algum consenso por parte, quer da IPTF, quer dos responsáveis políticos de ambas as facções. Pelo menos assim o deixaram entender. Apesar de tudo, a IPTF solicitou à IFOR apoio, visto, como é sabido, esta policia não dispor de qualquer tipo de armas, objectos que por estas paragens ainda vão tendo algum valor e utilidade.

Assim, o 2º BIAT recebeu ordem do escalão superior, a Brigada Multinacional Sarajevo Norte (BMN SN), para montar o dispositivo considerado apropriado, não para a visita se efectuar – e isto convém ficar bem claro – mas sim para que a IPTF pudesse levar a cabo a sua missão de monitorizar (acompanhar) a actuação das polícias locais (muçulmana e sérvia). A própria BMN SN envia para o local um destacamento de policia militar constituído por cerca de 50 militares do 1º Batalhão de Carabineiros Pára-quedistas.

Face à evidente predisposição das partes para o conflito o 2º BIAT reforçou o dispositivo

Face à evidente predisposição das partes para o conflito o 2º BIAT reforçou o dispositivo

O batalhão português coloca e estado de alerta os aquartelamentos de Ustipraca e Vitkovici e monta sobre a IEBL, entre Gorazde e Kopaci, um dispositivo armado que inclui 10 viaturas blindadas “Chaimite” e as respectivas guarnições completas. Ao todo são cerca de 500 homens, prontos para qualquer eventualidade, 10 dos quais nas imediações da linha de separação e uns 50 na “terra de ninguém” que irá separar os elementos de ambas as facções.

Aproxima-se as horas da visita e “espontaneamente” um grupo de cerca de 150 populares sérvios junta-se no meio da estrada, a uns 200m da IEBL. De imediato, aparece a polícia sérvia, e evita o avanço desta manifestação e para isso coloca-se na sua frente. Os nossos militares rapidamente constatam que estes populares vêm equipados com bastões, tábuas com pregos, uma ou outra pistola e imediatamente à retaguarda dos manifestantes, na beira da estrada, estaciona uma retroescavadora e uma viatura pesada carregada de terra e pedras. De ambos os lados da estrada, montes de pedras e tijolos estão estrategicamente arrumados. Não restem dúvidas, a população de Kopaci não quer a visita dos muçulmanos.

A IPTF dispõe do local de uns 4 polícias e estabelece contactos com o chefe da polícia sérvia, a quem agradece a rapidez com que colocou os seus homens no terreno, evitando o avanço da manifestação. Por insistência do comandante da força portuguesa, o monitor da IPTF pede á policia sérvia que verifique se entre os populares existem indivíduos armados. A IPTF informa os sérvios que os muçulmanos têm dois autocarros de passageiros em Gorazde e, apesar do bloqueio, tencionam avançar.
O tenente pára-quedista Rosa,comandante da companhia estacionada em Praca

O tenente Rosa,comandante da companhia estacionada em Ustipraca está no centro da acção

No centro da cidade de Gorazde, uma pequena multidão concentra-se junto dos autocarros, já completamente cheios, que se aprestam a partir. Junto a este aglomerado de gente, as autoridades políticas e policiais da cidade informam muito convictamente a IPTF e a IFOR que, embora nada tenham a ver com os cidadãos que pretendem visitar o cemitério, acham que a IFOR deve obrigar os sérvios a permitir a visita e nunca irão interferir no sentido de impedir a coluna de sair da cidade.

Terra de ninguém

Enquanto ambas as facções esgrimem argumentos para convencer a  IPTF e a IFOR da validade da sua argumentação (curiosamente o representante da UNHCR vagueia por ambos os lados, mas não se envolvendo…), os “páras” portugueses e italianos tomam posições sobre a IEBL, onde a tensão começa a subir. As armas ligeiras e pesadas estão municiadas, os LAW estão à mão e a vigilância é constante. De ambos os lados da estrada, a vegetação, ainda recentemente seca e despida de folhagens, é agora verde e abundante. Atiradores de elite italianos, equipados com armas de precisão e portugueses com os seus binóculos, esquadrinham o terreno, tentando detectar alguma ameaça. A sul apenas um campo aberto com alguma árvores de fruta até ao rio Drina não constiui grande perigo. A norte, uma encosta coberta de arvoredo é uma incógnita e ninguém tem muito interesse em sair da estrada. É que estamos junto à antiga linha de confrontação, zona possivelmente minada.

O major pára-quedista Prazeres, 2º comndante do 2ºBIAT

O major Prazeres, 2º comandante do 2ºBIAT coordena no terreno a acção do batalhão

O 2º comandante do batalhão em exercício comanda no terreno as operações em ligação permanente com o escalão superior. Está coadjuvado pelo oficial de ligação português em Gorazde. O comandante da 22ª CAT (Companhia de Atiradores), aquartelada em Ustipraca, na zona sérvia, tem a sua companhia no terreno, embarcada em viaturas blindadas “Chaimite”, e está no centro da “zona de ninguém”. De ambos os lados desta zona, vão chegando, via rádio, informações sobre o que se está a passar, quer em Gorazde quer na retaguarda da manifestação sérvia. E o que chega não é animador: ambas as facções parecem empenhadas em chegar ao confronto físico e nem mesmo alguma chuva que começa a cair os demove.

Também no terreno, no lado sérvio da IEBL, jornalistas da CPT – televisão da República Srpska  – e da Reuters TV, vão filmando os acontecimentos na esperança que se chegue a um confronto. Ficam desanimados quando lhes é referido que a IFOR tudo fará ara evitar esse tipo de situação. Mas aguardam.

As armas estão prontas mas os militares mantém a calma e controlam os acontecimentos

As armas estão prontas mas os militares mantêm a calma e controlam os acontecimentos

“A IFOR não permite a livre circulação”

Chega a coluna-auto, vinda da cidade muçulmana, e a tensão sobre a IEBL atinge o seu máximo. Sabemo-lo agora porque na altura o sentimento era ainda de crescendo. Até porque nos dias anteriores, em várias regiões da Bósnia-Herzegovina, a IFOR tinha chegado a abrir fogo para dispersar este tipo de manifestações/visitas e, num desses locais, as facções tinham chegado ao confronto aberto e havido vítimas mortais.

Os muçulmanos de Gorazde aproximam-se da IEBL, a policia sérvia aguarda e os militares portugueses estão prontos para o pior

Os muçulmanos de Gorazde aproximam-se da IEBL, a policia sérvia aguarda e os militares portugueses estão prontos para o pior

Novas negociações entre a IPTF, agora menos interessada do que antes em permitir a passagem da IEBL pelos muçulmanos e as facções no terreno. A posição de portugueses e italianos é clara: “Não vêm o que vai acontecer? Se querem o confronto basta avançar!” Mas os muçulmanos estão apostados em provar que não há liberdade de movimentos e continuam a exigir à IPTF que querem passar, querem visitar o cemitério de Kopaci.

O tempo vai passando e a coluna muçulmana acaba por fazer meia volta, não sem antes acusar a IFOR de nada fazer para que eles possam circular livremente na Bósnia-Herzegovina. Do lado sérvio canta-se vitória e os autarcas locais, curiosamente a aparecidos do meio da multidão, vêm parlamentar com a IPTF para combinar novo encontro, a fim de debater o problema da liberdade de movimentos.

O capitão Santana, comandante da companhia aquartelada em Vitkovici estabelece conversações com as autoridades muçulmanas no centro de Gorazde

O capitão Santana, comandante da companhia aquartelada em Vitkovici, estabelece conversações com as autoridades muçulmanas no centro de Gorazde

Aprendizagem da paz

A IFOR evitou, em Gorazde/Kopaci, como em muitos outros locais da Bósnia-Herzegovina, que as facções se envolvessem em confrontos que nada iam contribuir para o clima de confiança necessário ao restabelecimento da paz neste país. Mas as facções estão apostadas em fazer pender para o seu lado da balança aquilo que poderia ser uma boa medida para aumentar a confiança mútua: a visita aos cemitérios de ambos os lados da IEBL.

Os acordos de paz, assinados pelas partes, definem quais são as organizações internacionais que asseguram o cumprimento das suas várias vertentes. A IFOR só tem mandato para os aspectos militares e foi para isso que os países envolvidos enviaram unidades de combate. O facto é que as medidas militares estão a ser cumpridas – cessar-fogo; desmobilização de unidades – mas as politicas são mais difíceis de verificar, até porque os próprios acordos as definem com menos clareza que as militares. E as desconfianças são imensas.

Durante horas as guarnições das viaturas blindadas mantiveram a segurança ao local

Durante horas as guarnições das viaturas blindadas mantiveram a segurança ao local

Nesta fase que atravessamos (Abril/Maio 1996) bem assim como aquando da próxima realização de eleições, organizadas pela OSCE (Organização de Segurança e Cooperação na Europa), a quem a IFOR já prometeu o seu apoio, os desafios, que se colocam à Força de Implementação da OTAN, continuam enormes e os riscos também. Mas como a própria IFOR faz questão de referir, cabe às partes anteriormente envolvidas na guerra, trazer a paz às suas populações. As organizações internacionais não se podem nem devem substituir aos naturais, sob o risco de se eternizar a presença estrangeira nos mais diversos sectores de actividade de um país que se pretende independente e soberano.

Até ao final da acção as "armas" dos sérvios, vigiadas pelas Chaimites, mantiveram-se em posição

Até ao final da acção as "armas" dos sérvios, vigiadas pelas Chaimites portuguesas, mantiveram-se em posição

Mensagem do primeiro-ministro aos militares portugueses na Bósnia

“Ao terminar a visita à Missão das Forças Armadas Portuguesas – IFOR, na Bósnia-Herzegovina, desejo manifestar a todos os militares que a integram a minha enorme satisfação e grande apreço pela forma como estão a cumprir a sua missão.

Dos contactos havidos a todos os níveis, pude verificar os cuidados postos no planeamento e execução da viagem bem como o grande esforço e dedicação dos que, embora em condições adversas, tudo têm feito para prestigiar a participação das Forças Armadas Portuguesas nesta importante missão de implementação da paz, na Bósnia-Herzegovina.

Gostaria de destacar o aprumo, o sentido das responsabilidades e o alto profissionalismo dos militares com quem tive a oportunidade de trocar impressões assim como a excelente qualidade da exposição da situação apresentada no comando do 2º BIAT.

Reitero o meu grande apreço pela forma altamente dignificante e muito prestigiosa como tendes cumprido a missão e exorto-vos a continuares o vosso empenhamento para prestígio das Forças Armadas e de Portugal”.

António Guterres, em Rogatica no Posto de Comando do 2ºBatalhão de Infantaria Aerotransportado na República Srpska, Bósnia-Herzegovina, no dia 30 de Março de 1996.

*Inter Entity Boundary Line ou Linha de Separação Entre Entidades. Esta linha foi definida nos Acordos de Paz, em Dayton, marcada nas cartas topográficas e materializada n terreno com postes metálicos de cor de laranja. Estende-se por mais de 1.00Km e separa a Federação Bósnia (Croata-Muçulmana) da República Srpska (Sérvios). Esta linha é o eixo central de uma Zona de Separação (ZOS – Zone of Separation) de 4 Km de largura – 2 para cada lado da IEBL – constantemente vigiada pelas forças da IFOR (meios aéreos e terrestres), onde não podem existir unidades/forças militares das facções. O motivo pelo qual muitas populações de Sarajevo abandonaram as suas casas foi exactamente por terem – na sua perspectiva – ficado do lado “errado” da IEBL, isto é, em zona que passou para o controlo de Federação Bósnia. O mesmo se passou noutros locais com populações Croatas e Muçulmanas, embora o “peso mediático” da capital da Bósnia-Herzegovina tenha determinado mais atenção internacional a essa região.

A marcação no terreno da IEBL contou com a colaboração do 2º BIAT, no sector da Brigada Multinacional Sarajevo Norte. Em especial nos aspectos relativos à segurança e à definição exacta dos pontos de marcação. Os GPS do 2º BIAT foram muitas vezes, senão sempre, o “tira-teimas” para as dúvidas dos cartógrafos sérvios e muçulmanos. Estas acções de marcação permitiram constatar alguns factos curiosos, nomeadamente a facilidade com que os delegados de ambas as facções falam, trabalham e quase que confraternizam entre si (ainda no passado mês de Dezembro se combatiam ferozmente e nos mesmos locais onde hoje se encontram para marcar a IEBL). Visto esta linha ser, em grande parte do seu traçado, coincidente com a linha de confrontação – a frente de combate – a existência de campos de minas é uma constante. Nesta medida, sapadores sérvios e muçulmanos, para além dos especialistas italianos (BOE – Bonificatori Ordigni Esplosivi), acompanham, sempre, estas acções. E na quase totalidade dos casos o seu conhecimento da localização das minas, nestes locais, mostrou-se muito seguro.

A IEBL (linha a vermelho no mapa) passa junto a Gorazde, onde se passou este episódio

A IEBL (linha a vermelho no mapa) passa junto a Gorazde, onde se passou este episódio

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