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REQUIEM PARA UM COMBATENTE ARGENTINO

Por • 12 Set , 2009 • Categoria: 03. REPORTAGEM Print Print

O ex-Coronel Pára-quedista MOHAMED ALÍ SEINELDÍN, figura carismática e muito estimada nas forças especiais e em largos sectores da sociedade civil argentina, faleceu no passado dia 2 de Setembro de 2009, na cidade de Buenos Aires, vítima de uma paragem cardiorespiratória.

Pára-quedista militar, comando e mergulhador de combate, com o posto de Tenente-Coronel participou no conflito pela recuperação da soberania das Ilhas Malvinas, onde comandou o Regimento de Infantaria 25 (RI 25), um dos mais aguerridos e destacados elementos de manobra das Forças Armadas argentinas.

Era o “homem” mais temido pelas forças britânicas e as suas acções em combate provaram os seus dotes de liderança e comando, fazendo jus à preocupação manifestada pelos oficiais ao serviço de “Sua Majestade”.

Esta modesta síntese biográfica, é uma singela homenagem ao pára-quedista militar que tive a oportunidade de conhecer, pessoalmente, quando cumpria uma pena de prisão perpétua no Instituto Penal das Forças Armadas Argentinas em Campo de Mayo (arredores de Buenos Aires), em resultado de um obscuro, conturbado e injusto processo político-militar de que foi objecto e que a imprensa argentina baptizou como “Movimento dos Caras-pintadas”.

Visitado in loco, em 1 de Outubro de 1998, com a autorização especial das autoridades militares argentinas(1), pude desfrutar do raro privilégio de conversar e conviver (durante sete horas ininterruptas) com o “pai” das forças especiais argentinas. Militar (sempre assim se considerou! apesar de lhe terem retirado todos os títulos profissionais e o posto) de trato afável, convicções profundas e cultura geral invejável recebeu-me, nas parcas instalações do seu austero cativeiro onde tive a rara e singular oportunidade de conhecer as vicissitudes porque passaram as primeiras forças especiais do Exército Argentino, desde a sua fundação até aos nossos dias, sem esquecer a orgulhosa participação na “Gesta das Malvinas”.

Uma entre inúmeras missivas pessoais que o autor trocou, muitas vezes em condições adversas, com MOHAMED ALÍ SEINELDÍN. (Col. do autor)

Uma entre inúmeras missivas pessoais que o autor trocou, muitas vezes em condições adversas, com MOHAMED ALÍ SEINELDÍN. (Col. do autor)

Surpreendeu-me, ainda, o seu profundo conhecimento sobre a história militar portuguesa e suas campanhas em África – 1960-1974, tendo destacado as acções de combate das Tropas Pára-quedistas da Força Aérea Portuguesa.

À margem da sua deriva política, a faceta mais criticável do seu currículo, esta síntese biográfica é uma singela homenagem ao pára-quedista militar e combatente que a história argentina, jamais poderá contornar ou apagar das suas heróicas páginas.

SÍNTESE BIOGRÁFICA

MOHAMED ALÍ SEINELDÍN nasceu a 12 de Novembro de 1933 em Concepción del Uruguay. Apesar de oriundo de uma família de emigrantes árabes radicados na Argentina, cedo abraçou a religião católica, tendo-se tornado num fervoroso crente da “Virgen del Rosário”.

Em 1957 ingressou no Colégio Militar de la Nación com o posto de Subtenente da Arma de Infantaria, tendo sido, posteriormente, instrutor na Escuela de Suboficiales «Sargento Cabral», um estabelecimento de ensino militar para a classe de sargentos. Foi, aliás, neste espaço de tempo que criou e cimentou amizades sólidas provocando uma admiração profunda junto dos sargentos.

Em 1975 planeia os primeiros cursos com características especiais no seio do Exército, destacando-se a AEC (Aptidão Especial de Comandos) e, emprega estas pequenas unidades na luta anti-subversiva com resultados eficazes. É na Província de Tucumán (a mais pequena província argentina situada no norte) que neutraliza estes grupos subversivos do denominado Exército Revolucionário do Povo (ERP) e as suas técnicas de combate terroristas durante a operação com o nome de código «Independência» (1974-1978).

Depois de concluir a sua formação na Escuela Superior de Guerra, e já como oficial de Estado-Maior (com o posto de capitão comandou, ainda, uma pequena unidade pára-quedista na Província de Catamarca), é escolhido para uma das suas primeiras missões com carácter reservado.

No ano de 1978, receando ataques terroristas de grande envergadura, e a consequente espectacularidade que este tipo de acções despertam na opinião pública nacional e internacional, durante a realização do Campeonato Mundial de Futebol – 78, é escolhido para organizar e activar uma unidade especial assim designada: EQUIPA ESPECIAL DE LUTA CONTRA A SUBVERSÃO «HALCÓN 8».

Este núcleo muito restrito era uma equipa de acção directa, com elevado grau de operacionalidade e profissionalismo, constituído por 15 homens (1 oficial superior; 6 oficiais subalternos e 8 sargentos) e distribuídos por um Estado-Maior e três Secções de Assalto.

O Major Pára-quedista MOHAMED ALÍ SEINELDÍN, líder unanimemente reconhecido pelos seus dotes pessoais que sempre o distinguiram no planeamento e condução de operações especiais e na formação de militares aptos a executá-las com valentia e êxito total, foi também o responsável pela selecção, organização do curso e instrução da totalidade dos integrantes desta unidade.

Como curiosidade, refiro que «HALCÓN 8» é uma sigla constituída pelas iniciais das seguintes palavras espanholas: H-HÁBIL; A-AGIL; L-LIGERO; C-COMBATIVO; O-ORIGINAL e N-NOVEDOSO. O número “8” corresponde ao último algarismo do ano em que foi criado e activada a unidade: 1978.

Volvidas algumas semanas, a Nação argentina volta a chamá-lo para outra missão muito delicada: o conflito armado com o vizinho Chile, depois de a rainha britânica Elisabeth II ter concedido a posse do Canal de Beagle ao Chile, (o que na prática lhe garantia uma saída para o Oceano Atlântico) estava prestes a eclodir. A Argentina discordou da decisão, e as tropas de ambos os países chegaram a ser mobilizadas para uma guerra.

Especialmente para este momento, MOHAMED ALÍ SEINELDÍN formou dois grupos especiais de combate – HALCÓN I e HALCÓN II – na Província de Mendoza.

1982: o histórico flagrante que ilustra o Tenente-Coronel Pára-quedista MOHAMED ALÍ SEINELDÍN no comando do Regimento de Infantaria 25. Esta foto serviu para ilustrar a capa do seu livro intitulado «MALVINAS - UM SENTIMENTO». (Foto cedida ao autor pelo próprio)

1982: o histórico flagrante que ilustra o Tenente-Coronel Pára-quedista MOHAMED ALÍ SEINELDÍN no comando do Regimento de Infantaria 25. Esta foto serviu para ilustrar a capa do seu livro intitulado «MALVINAS - UM SENTIMENTO». (Foto cedida ao autor pelo próprio)

1982: O CONFLITO NAS ILHAS MALVINAS

Em 1833, a Inglaterra ocupa pela força as Ilhas e expulsa desse território a população argentina, violando acordos anteriores que reconheciam as Malvinas como parte integrante das Províncias Unidas del Río del la Plata. Desde então, a Argentina vinha reclamando nos distintos foros internacionais e perante a mesma Inglaterra, a restituição dos seus direitos de soberania. Em 1962, o Comité de Descolonização das Nações Unidas inclui as Ilhas Malvinas, na lista dos territórios a descolonizar. Em 1965, a ONU, através da Resolução 2065, nega o princípio da autodeterminação dos “kelpers” (assim são chamados os habitantes das Ilhas de origem inglesa) e incentiva a Argentina e a Inglaterra a prosseguir as negociações no âmbito do citado Comité. Em 1976, o Comité Jurídico da OEA reconhece á Argentina o “direito inalienável de soberania”, declaração ratificada pela Assembleia Geral. Em 1979, o bloco dos Países Não Alinhados declara explicitamente que as “MALVINAS SÃO ARGENTINAS”.

Em 1982, durante a acção militar desencadeada pelas Forças Armadas Argentinas (Operação Rosário) para recuperar a soberania das Ilhas Malvinas, Georgias do Sul e Sandwich do Sul, MOHAMED ALÍ SEINELDÍN, agora com o posto de Tenente-Coronel, parte para o Teatro de Operações à frente do Regimento de Infantaria 25 (RI 25). De todas as unidades de manobra em campanha, o RI 25 (formado por três companhias A, B e C) destacou-se pela sua bravura, tenacidade e excelente capacidade de combate, tendo sido a unidade de infantaria que mais baixas provocou nas unidades de elite inglesas. Deste confronto directo, a história registou a batalha que redundou na morte do Tenente-Coronel Pára-quedista HERBERT JONES do 2º Batalhão de Pára-quedistas inglês em Darwin-Goose Green (27/29 de Maio de 1982).

1985-1987: ADIDO MILITAR

Após o conflito das ILHAS MALVINAS, e depois de promovido a Coronel, MOHAMED ALÍ SEINELDÍN é nomeado Adido Militar na República do Panamá, cargo onde permaneceu até ao derrube do Presidente Manuel Noriega. Durante a sua vida militar activa prestou, também, missões de serviço público na Costa Rica, República Dominicana e Haiti.

O Coronel Pára-quedista MOHAMED ALÍ SEINELDÍN durante o período em que prestou serviço na República do Panamá. (Foto cedida ao autor pelo próprio)

O Coronel Pára-quedista MOHAMED ALÍ SEINELDÍN durante o período em que prestou serviço na República do Panamá. (Foto cedida ao autor pelo próprio)

REVOLTAS MILITARES (1988 e 1990)

Durante o consulado do Presidente Raúl Alfonsín, e perante as injustiças sociais cometidas contra os “veteranos das Malvinas”, aliado a intrigas internas no seio da instituição militar (a viver momentos conturbados depois do derrube do Governo Militar e a braços com uma perseguição constante por parte dos guerrilheiros vencidos, agora com influências decisivas no aparelho do Estado), o Coronel MOHAMED ALÍ SEINELDÍN, Chefe do Departamento de Operações do 2º Corpo de Exército (em Rosário) lidera a sublevação no Quartel de Villa Martelli(2) que redundou em três mortos e 40 feridos.

Poucos meses antes (1987), o próprio Seineldín já tinha sido acusado por “ex-guerrilheiros reciclados” e organismos de defesa dos direitos humanos como responsável pelo desaparecimento físico do cientista Alfredo Giorgi, ocorrida a 27 de Novembro de 1978. A Câmara Federal de San Martin, depois de uma exaustiva investigação, nada apurou sobre esta infundada acusação.

Esta revolta militar (orientada a defender todos os militares acusados por violações dos direitos humanos durante o combate à subversão) foi resolvida depois de um suposto acordo entre o Coronel MOHAMED ALÍ SEINELDÍN e o General Isidro Cáceres (Chefe do Exército). Em Outubro de 1989 foi indultado pelo Presidente Carlos Meném, depois de “promessas” nunca cumpridas.

Em 3 de Dezembro de 1990, assumiu a responsabilidade indirecta (no dia da revolta, Seineldín estava detido em San Martin de los Andes) de um levantamento militar, depois de cerca de 50 soldados (a maioria oficiais) terem tomado o controlo de instalações militares na Província de Buenos Aires, do Regimento de Patrícios e do Edifício Libertador, sede do Estado-Maior-General das Forças Armadas. Esta revolta teve um saldo de 14 mortos, sendo 5 civis (resultantes de um acidente entre um autocarro e um carro de combate) e mais de duas centenas de feridos, sendo considerada a mais violenta das revoltas militares.

1988: durante o assalto ao quartel de Villa Martelli. (Foto de arquivo)

1988: durante o assalto ao quartel de Villa Martelli. (Foto de arquivo)

O JULGAMENTO

Depois dos acontecimentos de 3 de Dezembro de 1990, baptizado com o nome de código «Virgem de Luján», o Coronel Pára-quedista MOHAMED ALÍ SEINELDÍN é julgado por um tribunal militar que o declarou “…culpado de todos os crimes.”

Durante o julgamento, o Coronel SEINELDÍN assumiu a total responsabilidade pelas mortes provocadas durante a revolta e, aproveita o momento para dar a conhecer junto dos jornais e ao povo argentino (7 de Agosto de 1991) o seu pensamento político-militar através de um texto intitulado «A NOVA ORDEM MUNDIAL».

Terminado o julgamento e, numa primeira instância, é condenado à pena de morte. Porém, a “pressa” na execução desta sentença, chamou a atenção de várias personalidades mundiais, entre elas o Papa João Paulo II que intercederam de imediato junto das autoridades argentinas.

Perante os clamores mundiais, a pena é comutada em prisão perpétua, cumprindo de imediato um ano em Caseros, quatro em Magdalena e o resto no Instituto Penal das Forças Armadas Argentinas em Campo de Mayo (arredores de Buenos Aires) num total de 13 anos. Durante este período, só em 31 de Julho de 2000 lhe foi concedida uma autorização especial para participar no funeral (cemitério de Chacarita) do seu filho, Mariano José, que havia falecido vítima de esclerose múltipla aos 39 anos de idade.

Em 2 de Dezembro de 1993 é expulso das fileiras do Exército, depois de a “Junta de Qualificações do Exército de Terra” ter decidido por seis votos a favor e um contra.

Panfleto distribuido durante as manifestações para a liberdade de SEINELDÍN. (Original / Col. do autor)

Panfleto distribuido durante as manifestações para a liberdade de SEINELDÍN. (Original / Col. do autor)

O QUOTIDIANO DEPOIS DO INDULTO

Enquanto cumpria a pena de prisão perpétua, num regime severo e rígido que tive a oportunidade de conhecer, surgiram na sociedade civil argentina, e principalmente no seio de muitos milhares de soldados e veteranos da Guerra das Malvinas, movimentos cívicos para a sua liberdade.

Com a expulsão da instituição militar, despojado do seu posto e direitos sociais inerentes, sem recursos económicos para sustentar a família, valeu-lhe, em determinado momento, uma onda de solidariedade que se quotizou para suportar as despesas de pagamento do arrendamento da residência onde morava a sua família.

Confrontado com este caso de contornos políticos que a história, um dia, se encarregará de julgar com outros parâmetros, em 20 de Maio de 2003, o então Presidente Eduardo Duhalde indultou (o 2º indulto da sua vida) o ex-Coronel Pára-quedista MOHAMED ALÍ SEINELDÍN(3).

Desde então, MOHAMED ALÍ SEINELDÍN dividia o seu tempo, e emprestava o seu prestígio curricular, proferindo palestras, participando em actos políticos e culturais, mas também trabalhando para poder sobreviver e sustentar o seu agregado familiar.

Nos últimos tempos desempenhava funções numa empresa de segurança privada em Santiago del Estero, e numa ONG de Cuidados de Saúde, tendo falecido em 2 de Setembro de 2009, com 75 anos de idade, vítima de uma paragem cardiorespiratória.

MOHAMED ALÍ SEINELDÍN cumprindo prisão perpétua no Instituto Penal das Forças Armadas em Campo de Mayo, arredores de Buenos Aires. (Foto oferecida pelo próprio ao autor durante a visita ao seu cativeiro)

MOHAMED ALÍ SEINELDÍN cumprindo prisão perpétua no Instituto Penal das Forças Armadas em Campo de Mayo, arredores de Buenos Aires. (Foto oferecida pelo próprio ao autor durante a visita ao seu cativeiro em 1OUT98)

Termino este requiem, transcrevendo um pensamento que o ex-Coronel Pára-quedista MOHAMED ALÍ SEINELDÍN escreveu para os cadetes do Liceu Militar em 1983, e com um saudoso abraço de quem teve o privilégio de ser teu amigo:

«…A Lei 1420 derrogou o ensino católico obrigatório nas escolas, anulando desta maneira a sabedoria natural que sustentou durante séculos a nossa cultura ocidental. Posteriormente, e a um só ano da Revolução Comunista de 1917, veio a Reforma Universitária de 1918; eu creio que os resultados desta descristianização podem ser comprovados com o produto que deu o terrorismo marxista-leninista que assolou a nossa Pátria. Devem recordar que os seus principais dirigentes saíram da universidade.»

NOTAS:

(*) Este artigo foi elaborado com base em documentos colectados pelo autor em Buenos Aires / Argentina, troca de correspondência pessoal com o ex-Coronel Pára-quedista MOHAMED ALÍ SEINELDÍN e inúmeras fotografias gentilmente cedidas em diversos momentos e ao longo de vários anos de intensa troca de correspondência.

(1) Esta visita teve como objectivo principal elaborar um trabalho histórico sobre a criação do pára-quedismo militar argentino, da especialidade “Comandos” no seio do Exército Argentino, e de outras unidades com características especiais.

(2) Neste período SEINELDÍN em declarações escritas exigia «…uma solução política para terminar com o grotesco de que uma situação de guerra como a que se viveu entre 1975 e 1980 se julgue com leis próprias de épocas de paz.»

(3) Em Setembro de 2006, o juiz federal Norberto Oyarbide solicitou ao Ministério da Defesa o envio dos relatórios sobre a revolta de 3 de Dezembro de 1990, como medida processual despoletada por um pedido de anulação do indulto.

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