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SOBRE A GUERRA…

Por • 4 Jun , 2011 • Categoria: 02. OPINIÃO Print Print

Esta reflexão sobre a guerra que hoje publicamos é de um civil – que cumpriu o serviço militar obrigatório no Exército Português – Alexandre Gonçalves, 43 anos de idade, designer gráfico e ilustrador de profissão. Paralelamente, dedica-se à música enquanto vocalista/letrista e à Banda Desenhada, estando neste momento a desenvolver um álbum histórico adaptado de um diário escrito em 1944 por um amigo francês.
É igualmente um estudioso amador da história da 2ª Guerra Mundial, no âmbito da qual, realiza ilustrações, artigos e modelismo.
Tem um projecto editorial finalizado de uma Revista de História Militar na “gaveta”, aguardando a luz do dia, e pretende publicar brevemente um livro de contos de ficção histórica de sua autoria.
Recentemente Alexandre Gonçalves tem focado a sua atenção nas Forças Armadas Portuguesas, estando a fazer Ilustração Militar para Unidades do Exército, e também, a título particular.
É com muito gosto que recebemos a sua colaboração no “Operacional” e publicamos o seu interessado olhar sobre a guerra.

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SOBRE A GUERRA…

Escrever sobre a guerra é, em primeiro lugar, escrever sobre a condição humana. Nenhuma outra situação que envolva o ser humano, pode proporcionar, de forma tão completa, uma visão sobre o homem. Porque é a guerra que desencadeia o seu melhor e o seu pior, e, entre esse melhor e esse pior, está toda a escala de atributos que o definem. A guerra é a primordial e derradeira natureza do homem. É através dela, que melhor podemos entender o que é ser humano.

Maleitas da falta de educação e da neutralidade
Em Portugal, existe a noção generalizada, de que as pessoas que se interessam por história militar, gostam de guerra. Esta minha convicção, nasceu do facto, de, por várias vezes, ao falar de forma entusiasmada de “assuntos” militares, com pessoas que não se interessam particularmente por eles, ouvir, para meu espanto, esta fantástica pergunta “mas tu gostas de guerra?” Quando oiço este tipo de comentários, fico imediatamente sem vontade de lhes explicar que é exactamente o contrário. O General Eisenhower disse uma vez, que ninguém odeia mais a guerra do que um soldado. Eu sou civil e nunca estive na guerra, mas concordo plenamente com ele.
Também existe a noção generalizada de que os militares de carreira, são militares, porque gostam de guerra, ou então, “parasitas” que vivem dos nossos impostos. Os que eu conheço, não gostam de guerra, até porque, quase todos lá estiveram. Em relação a serem parasitas, os parasitas que eu conheço são todos civis. Infelizmente, e esta é outra história, no nosso pobre país, ser-se militar, é muitas vezes uma questão de necessidade e não de vocação. É apenas um emprego e o ordenado é certo. Como disse um amigo meu, ser militar em Portugal não é um modo de morte, é um modo de vida. Sei que estas palavras, só serão entendidas pelos poucos civis que pensam como eu, os outros vão continuar a pensar que eu gosto de guerra. Coincidência ou não, este tipo de situações só me acontecem em Portugal. Nos países europeus que conheço, os militares são acarinhados pela população civil, e são vistos como parte activa e fundamental da estrutura social. Porquê? Porque os Europeus são gratos aos militares. Têm consciência do quanto lhes devem, dos sacrifícios que passaram quando o mundo esteve em guerra, e dos sacrifícios que continuam a passar hoje em várias partes do mundo. Os portugueses não o são. Eu tenho uma explicação para esse facto, e obviamente é uma opinião pessoal – Os portugueses não são gratos aos militares, porque não combateram na 2ª Guerra Mundial. Este conflito criou uma profunda ligação afectiva entre civis e militares, que é alimentada e transmitida de geração para geração. Porque civis e soldados sofreram juntos. É impressionante ver o interesse e a consciência das crianças francesas, inglesas, americanas, russas, holandesas, belgas, alemãs de 6, 7 e 8 anos! Nós, pura e simplesmente não temos essa ligação.
Só me recordo de um tempo em que os nossos militares foram “bem tratados” – No 25 de Abril. Nessa altura até “deram jeito”…
A “classe” civil portuguesa tem a memória muito curta. Maltratamos os nossos Veteranos do século XX – os que combateram na “Grande Guerra” e os que combateram em África. O total esquecimento da memória dos primeiros, e a falta de um obrigado em vida aos segundos.
As pessoas esquecem-se que os soldados não vão para a guerra porque lhes apetece, vão porque os seus Presidentes os mandam – umas vezes bem, (em nome da Pátria e de uma causa justa) outras vezes mal, (em nome próprio e de um interesse pessoal) Os americanos foram, durante o séc. XX, um excelente exemplo do que quero dizer – Os soldados da 2ªGuerra e os soldados do Vietname – Ambos fizeram o que lhes foi pedido, mas uns foram recebidos com flores e beijos pelas populações, e os outros, com pedras e cuspo…

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Remembrance Day, Camp Hill

Os civis pardos
Observo que no meu país existem duas grandes facções pardas, que se odeiam com vigor: Os que adoram e glorificam a guerra, porque nunca a viveram, mas vêem os filmes todos e jogam os jogos todos, e os que a detestam, e que até fugiam do país para não ir à “tropa”, quanto mais à guerra. Neste ponto, é necessário perguntar que guerra? Porque há guerras que têm e devem ser lutadas e outras não. Falo apenas dos que fogem, só por ouvir a palavra. Curiosa e paradoxalmente, ambas as partes erram por ignorância, sendo que o fundamento do erro é exactamente o mesmo, mas invertido. Aos “Rambos” de fim-de-semana, digo-lhes que se estivessem estado na guerra, passariam a ódia-la, e que seriam os primeiros a fugir. Aos “Hippies”, digo que os soldados não tomam banho porque não podem, e eles porque não querem. Corro o risco de ser insultado pelos “Seguranças” e pelos Desempregados do meu país. Intelectual para os primeiros, e militarista para os segundos. A minha indiferença por ambos, o facto de ser civil e viver num país em que a sociedade civil está divorciada da militar, faz-me caminhar quase sempre na “terra de ninguém”. Faz de mim uma “ave rara”. E ainda bem.

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A estética da guerra
A guerra é um estímulo visual muito poderoso. Para aqueles que, como eu, se interessam pelo tema, mas nunca por ela passaram, é-se tentado a ter uma visão romântica da guerra, a recolher apenas a componente épica e gloriosa dos combates e dos combatentes. Para quem a viveu, a guerra nunca é grandiosa e romântica; é um inferno. Vem-me à memória uma excepção. O General Patton conseguiu ver grandiosidade e romantismo na guerra…
A literatura, a fotografia, o cinema e a televisão, transformaram uma realidade brutal, num jogo sensorial viril para quem vê, mas felizmente não sente. Com a excepção das imagens onde a morte ou o sofrimento são explícitos, a estética da guerra pode ser bastante sedutora para o homem comum. No fim de contas, os heróis nascem na guerra e todos queremos ser heróis…
As primeiras imagens iconográficas do mundo nasceram na Segunda Guerra Mundial. As mais belas máquinas de guerra nasceram na Segunda Guerra Mundial. Se o pacifista mais empedernido me disser que um “Spitfire” é feio, ou é mentiroso, ou tem uma total ausência de bom gosto. Aliás, se nos conseguirmos abstrair da tragédia implícita, a guerra proporciona imagens de rara beleza, sobretudo quando a noite cai.

A “minha guerra”
Dito isto, passemos à “minha guerra”. Como atrás referi, há guerras que devem ser lutadas, e são essas as que mais me interessam, as que mudaram o mundo. As outras, podem ser interessantes num aspecto meramente estratégico, táctico e técnico. Apenas duas guerras, mudaram o mundo, mas só uma o mudou para melhor. E essa, foi a Segunda Guerra Mundial, a guerra do cidadão soldado, da causa justa. É sobretudo sobre essa que eu desenho, leio, e escrevo. É com essa que continuo a aprender. É a única, que a meu ver abarca a condição humana em toda a sua grandeza e tragédia – por ser (quase) mundial. É também a única que teve uma influência directa no mundo em que eu nasci, e provavelmente, na pessoa que sou hoje. Obviamente, como Português, tenho de mencionar a “nossa” guerra, a Ultramarina, na medida do impacto que teve no Pais em que nasci e portanto, na pessoa que sou. Mas a guerra Colonial não mudou o mundo.
Todos temos uma dívida de gratidão para com os homens e mulheres que lutaram na Segunda Guerra Mundial, os que lutaram para impor a democracia e a liberdade. Alistaram-se, não porque gostavam da guerra, não porque queriam a guerra, não por medalhas, glória ou reconhecimento, mas sim, porque era o que devia, e tinha de ser feito. Os que voltaram para casa, mesmo aqueles que trouxeram cicatrizes físicas e mentais, voltaram melhores pessoas, mais fortes e mais justos. O meu tributo aplica-se também e obviamente, a todos os soldados que vestiram “outro uniforme” e combateram com honra e dignidade pelo seu país.
Todos deram muito, e muitos deram tudo. Devemos o nosso hoje aos que deram o seu amanhã. Não podemos, nem devemos esquecê-lo, nunca.

O meu namoro com a Segunda Guerra Mundial, começou na biblioteca dos meus avós. Tive a sorte de ambos serem Jornalistas e, para mais, tradutores de alguns desses livros. Tinha seis ou sete anos, e ficava hipnotizado com aquelas fotografias a preto e branco dos soldados e das máquinas, em terras que me pareciam tão distantes. A paixão veio, quando comecei a ler e a entender o gigantismo e o drama de tudo aquilo, quando via os Documentários e ouvia os relatos dos Veteranos. O amor, surgiu mais tarde, quando fui a primeira vez a França, e percorri os caminhos onde lutaram, viveram, e morreram os homens que eu vira nas fotografias. Nesses caminhos da memória, tive o privilégio de conhecer alguns homens que são a memória viva. Ao conhecê-los, tornei-me melhor pessoa.
O que me atrai na Segunda Guerra Mundial é a forma de ser e de estar dos homens e mulheres desse tempo, os cenários e os locais, as atmosferas, a maquinaria, o seu aspecto técnico e estético, a musica, o drama, a grandiosidade, a complexidade das operações, a própria visão da destruição material. Mas, acima de tudo, por ser um imenso e inesgotável campo de estudo e de aprendizagem sociológica e filosófica – lições que se mantêm válidas e cada vez mais pertinentes nos dias de hoje. Há igualmente, um outro factor importante, pelo menos para mim – Foi uma guerra moderna sem o ser.
Tudo isto me inspira e motiva nesta guerra, porque, felizmente para mim, a guerra pode ser romântica. Toda a imagética da Segunda Guerra Mundial e da década na qual se desenrolou e terminou, me é particularmente apelativa; seja a sua parte civil ou militar, até porque, uma e outra são indissociáveis. Foi a última década da história de um certo tipo de viver, de cavalheirismo, de valores e princípios, de “glamour” e inocência. Quando terminou, o mundo nunca mais foi o mesmo. Os anos 40 marcaram o fim de uma era e viram crescer e morrer sessenta milhões de seres humanos. Produziram os melhores e os piores homens que a humanidade conheceu. A tecnologia atingiu o seu cume de perfeição nesta década. Foi uma década dividida exactamente ao meio; cinco anos de morte e destruição, cinco anos de vida e reconstrução. A “Grande Geração”, foi forjada nestes dez anos, os homens e as mulheres a quem devemos a nossa liberdade. O mundo moderno nasceu com esta guerra.
Para uns, a Segunda Guerra Mundial terminou em 1945 com a rendição Japonesa, para outros, terminou em 1989 com a queda do Muro de Berlim, para outros ainda, em 2004, com o abraço histórico entre o Chanceler Alemão e o Presidente Francês no Cemitério Americano de Colleville-sur-Mer, na Normandia. E há aqueles, para quem só termina, com a morte do último sobrevivente, e a sua própria. Eu incluo-me nestes últimos. Até à morte.

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Vem de Portugal?!
Passemos agora ao que não se devia passar. Nas viagens que fiz a alguns dos sítios onde a guerra aconteceu, cheguei a uma triste conclusão – eu era invariavelmente, o primeiro Português que conheciam. Não o primeiro Português emigrante, mas o primeiro que se interessava pela história da guerra. Particularmente em França, onde todos os franceses nos conhecem, e onde, por sinal, vivemos aos magotes… mas não ligamos a ponta de um corno. Aliás, e corrijam-me se estiver errado, até me parece que os franceses se preocupam mais com os nossos mortos de 14-18, do que nós próprios…
Nos museus, nas praias, nos campos, nos monumentos, nos memoriais, nas lojas, nos hotéis, nas casas particulares de turismo de habitação onde fiquei hospedado, nos cafés, nas conversas com veteranos e residentes, entre grupos de Americanos, Ingleses, Alemães, Austríacos, Belgas, Canadianos, Australianos, Holandeses Noruegueses, Dinamarqueses, Espanhóis, Italianos, Gregos, e até Brasileiros, entre todos os outros, (porque afinal, esta guerra foi mundial… ou não?) eu era sempre o único Português. A “ave rara” não (e)migratória que ali pousa de vez em quando, transviada do bando. Claro que, na Normandia, como em muitos outros sítios nunca me sinto “ave rara”, porque estou entre interessados. É obvio que os Portugueses não têm obrigação de ser interessados pela história da Segunda Guerra Mundial, mas têm a obrigação de serem agradecidos. Aos que lutaram e morreram.
O nosso país não entrou na guerra, não fomos bombardeados, invadidos, refugiados, repatriados, torturados, executados, não morreu ninguém, mas ajudámos o esforço de guerra Alemão com matérias primas, recebemos ouro roubado pelos Nazis, e tínhamos um ditador que conseguiu a “proeza” de ser amigo de Hitler e de Churchill ao mesmo tempo, e ainda emprestou uma Base Aérea a Roosevelt. No entanto, beneficiámos com a Vitória Aliada no período do pós-guerra.
Era bom, que, em vez de passarmos sempre as férias no Brasil, e na República Dominicana, a torrar a pele e o dinheiro no meio da pobreza, fossemos a sítios como a Normandia e as Ardenas, depositar uma coroa de flores no cemitério. Apertar a mão de um velho soldado e dizer obrigado. Nem que seja só uma vez. Interesse histórico à parte, são dos locais mais belos da Europa para se visitar.
Era igualmente bom, que o nosso Ministério da Educação implementasse o estudo da Primeira e Segunda Guerras Mundiais na disciplina de História, para que as crianças deste país, saibam que a liberdade não é gratuita. As crianças dos países que atrás mencionei, sabem-no. Talvez, daqui a uns anos, em vez de irem ao Rio de Janeiro, os nossos filhos queiram ir à Normandia. As praias nem sempre foram, e nem sempre são apenas para tomar banho. Quem sabe…

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O grande paradoxo
O lado bom da guerra. O que trás a guerra de bom? Desenvolvimento tecnológico e cientifico, o aperfeiçoamento da disciplina, da eficácia, do pragmatismo, do desembaraço, do método, do rigor, da rapidez, da liderança, do trabalho de equipa, da resistência física e mental, do “espírito de corpo”. Tudo isto, pode obviamente ser conseguido sem guerra, apesar de, sem ela, demorar sempre mais tempo. Há, no entanto, uma “coisa” que só a guerra pode e sabe produzir, uma ligação especial entre os homens, mais forte do que o sangue, e que só existe em combate, apenas alcançável para quem olhou muitas vezes a morte nos olhos, desceu ao inferno e voltou para contar a história – Um tipo de amizade única, forjada com materiais desconhecidos para quem nunca confiou a sua vida ao camarada com quem partilhou o mesmo buraco, nas linhas da frente de qualquer guerra – A honra, o dever, a lealdade e o respeito. O que fica da guerra? Perguntem a qualquer Veterano, e ele dirá Amizade. É comum um Veterano afirmar que conhece melhor os seus camaradas do que o pai, a mãe, o irmão e mesmo a mulher (ou marido). O que faz com que um grupo de pessoas que por vezes vivem a milhares de quilómetros de distancia, se juntem todos os anos durante 68 anos consecutivos? O que faz com que um Veterano de 80 e 90 anos, por vezes numa cadeira de rodas, entre num avião, atravesse um oceano, e vá todos os anos à Normandia para se ajoelhar na campa do seu amigo que morreu com 20 anos? Não conheço mais ninguém assim. Eu não sou Soldado, mas ao ter a honra de ser amigo de alguns, gosto de pensar que aprendi a entender esse tipo de amizade. Perdoem-me a presunção.
Termino com as palavras de Dick Winters, um herói e um homem que me serve de modelo na vida – “As guerras não tornam os homens grandes, mas despertam a grandeza nos homens bons”

Alexandre Gonçalves

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