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SENHOR MÉDICO, NOSSO ALFERES – GUINÉ, OS ANOS DA GUERRA

Por • 17 Nov , 2014 • Categoria: 08. JÁ LEMOS E... Print Print

Muito interessante este relato da vivência de um médico, José Pratas, durante a sua comissão de dois anos na então Guiné Portuguesa, em 1971 / 1973. É um olhar sobre a guerra do ponto de vista de quem pela natureza do seu trabalho, se vê colocado “ao nível do soldado da quadrícula”, e daí nos descreve de modo primoroso mas implacável, além da brutalidade do conflito, aquilo que o marcou nas relações pessoais e de serviço com militares e civis, metropolitanos e locais.

001 Capa Senhor Médico

Mais de 40 anos depois de terminada a comissão de serviço, o Dr. José Pratas recorda, por vezes com detalhes notáveis – por exemplo os diálogos e as apreciações que faz de diversas personalidades que com ele se cruzaram – episódios daquilo porque passou no cumprimento do serviço militar obrigatório, em Mafra na Escola Prática de Infantaria e em aquartelamentos “no mato” do Comando Territorial Independente da Guiné. O livro é aliás mais aquilo que rodeia o autor do que propriamente uma descrição – embora a tenha a espaços – da sua acção pessoal no desempenho da medicina em campanha.

São dez episódios de leitura fácil e aliciante, mas que também nos deixam aqui e ali um travo amargo pela descrição que faz de pessoas com quem lidou e de situações que viveu. Algumas mesmo dramáticas, como a morte de cinco cadetes em Mafra ou a resistência heróica de um punhado de militares num perdido destacamento no nordeste da Guiné, junto à fronteira, resistindo com escassos meios aos ataques do PAIGC.

É um livro que destrói em várias ocasiões uma visão romântica do modo português de fazer a guerra que tem sido ao longo dos anos muito adoptada sobretudo pelos militares dos quadros permanentes que a viveram e a recordam também em livro – José Pratas, com excepções, arrasa os oficiais superiores, mesmo os médicos, que “faziam a guerra em Bissau” e o seu modo de vida na Colónia – mas ao mesmo tempo, também destaca o esforço da acção não-militar das nossas tropas e opina que essa atitude, independentemente das suas razões naturalmente ligadas à estratégia definida pelo comando militar, teve impacto muito positivo na vida das populações – nunca antes tiveram tantas condições e apoios ao desenvolvimento – e até, faz questão de frisar, terá levado o inimigo a abrandar a sua acção militar em certas regiões.

A visão que o alferes miliciano médico José Pratas nos dá das limitações materiais e humanas nas forças portuguesas em situações de campanha muito difíceis – este médico esteve sempre no “mato” e a sua expectativa de uma colocação em Bissau nunca se concretizou – é talvez o facto mais marcante e interessante do livro, para quem não viveu a guerra e sobre ela tem curiosidade analítica. Para quem esteve na Guiné como este médico, a cumprir o serviço militar nos aquartelamentos da “quadrícula”, certamente se identificará com muito do que aqui está escrito.

No entanto não se pense que tudo foi negativo para José Pratas, também enaltece, e muito, os enfermeiros militares que sem formação adequada nem meios acompanhavam as tropas e a quem cabia o primeiro apoio aos feridos, fazendo milagres; os soldados, talvez tratados com algum paternalismo simpático, são inegavelmente defendidos pelo médico; tem referências positivas e elogiosas a pilotos e a unidades de elite com as quais contactou e também a oficiais da “quadrícula”, como um comandante que teve, antipático mas reconhecidamente competente, ou o colega oficial superior médico que o apoiou e ajudou numa altura de grande debilidade, tolhido pela doença e verdadeiramente abandonado em Bissau, ou, só para dar mais um exemplo, o comandante do NRP Montante (uma Lancha de Desembarque Grande), cuja insígnia sempre manteve e ainda hoje está no seu gabinete de trabalho.

Arrasador para um elemento da DGS com o qual conviveu, dedica-lhe mesmo um capítulo, como dedica um aos capelães – com uma interessante visão sobre o apoio religioso às tropas em campanha – acerca dos quais também pouco ainda se sabe da sua acção na guerra; muito elogioso para um civil português que vivia e trabalhava junto a um quartel, faz também algumas considerações que vão além da sua vivência pessoal, pronunciando-se sobre o evoluir da guerra na Guiné, as limitações que por ali se viveram depois dos ataques com misseis aos meios aéreos portugueses, manifestando a convicção pessoal que a guerra estaria perdida para as forças portuguesas.

De alma e coração com os antigos combatentes, e em especial os da Guiné, reconhecendo a falta de atenção dos poderes públicos da democracia pelos que se bateram em África, José Pratas não poupa nem o ensino universitário da medicina que não preparava os médicos para a guerra, nem a hierarquia militar, mesmo a que estava no terreno vista em parte dos casos como incompetente, mas sobretudo a dos gabinetes em Bissau: os que íam ver a guerra de máquina fotográfica, voltavam no mesmo dia ao ar condicionado, com histórias para contar. A enorme diferença entre as condições de vida na “quadrícula” onde o autor sempre esteve, e Bissau por onde passou ocasionalmente, não foi coisa que o alferes miliciano médico Pratas aceitasse de ânimo leve. A isso foi obrigado e deixa-o bem claro hoje.

O testemunho do Dr. José Pratas deve ser lido por todos os que se interessam pela história da guerra no antigo Ultramar e em especial na Guiné. Aqui e ali pode a sua opinião sobre o evoluir da guerra estar enviesado pelo posto de observação que na altura tinha, muito junto ao terreno! Mas essa é também uma das grandes mais-valias deste livro, é alguém que olha para o que o rodeia e nos transmite uma realidade sem os habituais filtros que impedem muitos, sobretudo os militares de carreira, de contar toda a verdade sobre muitas incompetências e lacunas que todos viram e sentiram.

Uma nota final para as excelentes fotografias a preto e branco que ilustram a obra, da autoria de outro médico militar miliciano – João Trindade – que escreve um sentido Prefácio à obra, e ao qual retiramos este excerto:

“…Vão, portanto, ler um livro sério, escrito com arte e sabedoria, numa prosa elegante, fluente, simples e apelativa, com excelente dinâmica, com passagens de grande beleza poética – a poesia, hoje, prescinde muitas vezes da métrica e da rima –, salpicada de histórias quer divertidas quer dramáticas e comoventes, harmoniosamente entrosadas, com equilíbrio e perspicácia, dando força à narrativa dentro da matriz autobiográfica; uma obra em suma, com inegável valor literário…

 

SENHOR MÉDICO, NOSSO ALFERES – GUINÉ, OS ANOS DA GUERRA, é uma cuidada edição da “By the Book” de Outubro de 2014, tem formato 15x21cm, 150 páginas, e ISBN 978-989-8614-21-6

Preço do livro nas livrarias: 12,00€; na editora: 10,00€

Rua das Pedreiras, 16-4º, 1400-271 Lisboa | Portugal, t/f: +351 213 610 997, info@bythebook.pt | bythebook@sapo.pt

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