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SARAJEVO, O VULCÃO DOS BALCÃS

Por • 13 Nov , 2012 • Categoria: 08. JÁ LEMOS E... Print Print

Miguel Costa Barreto escreve, tanto quanto sabemos, o primeiro romance português que tem como pano de fundo as novas missões militares e policiais do pós-Guerra no Ultramar. Tardava um relato como este, onde a dramática realidade dos efeitos da guerra se cruzam com o combate ao crime, num cenário onde não faltam ingredientes como corrupção, sexo e traição, mas também sentido do dever e lealdade.sarajevo-vulcao-dos-balcas
Antes de mais, uma clarificação prévia, pela pena do autor, major de infantaria da GNR, “Alguns dos episódios descritos são reais, mas a maioria da história sobre a missão propriamente dita é imaginária (…) as personagens policiais e as situações abordadas (…) são de facto criadas por mim (…) os assuntos aconteceram (…) já no que concerne à história da verdadeira heroína deste livro (…) o relato é real, é a materialização das suas memórias, histórias e sentimentos (…)“.
Sarajevo, o vulcão dos Balcãs” é uma agradável surpresa. Quem tinha lido o anterior livro de Miguel Costa Barreto (Guerra é Guerra), nota evolução na escrita – o tipo de livro é outro, mas nota-se – e, mesmo que aqui também se mantenha o cunho autobiográfico, a história principal, aquela que prende e que emerge com tremenda força, é muito bem contada por Costa Barreto mas não é a sua. Mesmo nas partes em que é interveniente – e é ao longo de todo o livro – a sua presença já é mais “suave” que no livro respeitante ao Iraque, o que do nosso ponto de vista torna a leitura mais agradável. Não que as suas “aventuras” sejam desinteressantes, antes pelo contrário, mas alarga o leque de protagonistas aumentando assim quanto a nós o interesse do leitor.

Não vamos aqui revelar o conteúdo desta obra, uma das suas virtudes é conseguir ir surpreendendo o leitor, por vezes com dureza, e manter a atenção ao longo das suas quase 500 páginas. Podemos no entanto dizer que tem duas histórias principais, onde se cruzam várias outras: a do major português, gabarolas, “macho latino” que “gosta de saias”, profissional competente e dedicado mas também algo ingénuo, mesmo que acabe “dando a volta por cima”, que serve com brilho na European Union Police Mission (EUPM) na Bósnia-Herzegovina em 2007. Descreve com detalhes profissionais, humanos e geográficos (um aliciante para quem conhece a Bósnia, que assim recorda locais marcantes deste país), as suas peripécias no apoio à polícia local, no combate ao crime naquele jovem país, e nessa medida dá-nos uma crua e dura realidade do que por ali se vai passando, hoje, não poupando muçulmanos, sérvios, croatas ou mesmo os seus colegas polícias e funcionários “internacionais”, mas também revelando em todos estes grupos, gente boa, competente e empenhada. Depois, somos guiados também com detalhes, muitas vezes cruéis, para a triste odisseia (real!) de uma família croata que passa pelas vicissitudes da guerra civil e que sofre as suas consequências de modo brutal e trágico, não só no momento em que a guerra os atinge, mas anos seguidos e para todo o sempre. Até hoje e certamente no futuro, o tempo pode esbater mas não apaga factos como os que esta família e tantas outras, milhares, sofreram.

Tardava na realidade que uma experiência humana tão rica como é a participação numa missão de paz, fosse aproveitada para uma obra deste tipo. Deve-se contudo assinalar que a grande maioria dos portugueses que têm sido testemunhas de conflitos um pouco por todo o mundo, não terão a possibilidade de conhecer a fundo, como Costa Barreto bem nos transmite, aquilo que os rodeia nesses ambientes. Empenhados que estão no seu trabalho diário, sujeitos a regras de segurança rígidas e enquadrados em unidades, tal não é viável. Apenas uma minoria, nos quais se encontraram por exemplo os observadores militares que serviram nos Balcãs e os polícias da PSP ou os militares da GNR – como Costa Barreto – que ali e em outros locais, lidam durante as missões em relativa liberdade com a população, têm esta possibilidade. Muitos militares talvez até por autodefesa, mais do que legítima, cumprem o seu tempo nos teatros de operações mais preocupados com a família que deixaram em Portugal do que com as tragédias humanas que ali podem encontrar, não mergulhando por isso em realidades complexas como estas da Bósnia Herzegovina. Ainda bem que Costa Barreto cortou com isto e se predispôs a escrever!
Uma outra nota curiosa sobre o desenrolar da acção, o major da GNR Costa Barreto, personagem central da história, além de se ver envolvido em tórridas cenas amorosas descritas com grande pormenor, não foge a falar de si próprio por vezes com dureza, e a descrever sem complexos aspectos positivos e negativos dos actores locais. Ali não houve e não há santos e muitas vezes quem escreve tem alguma dose de “militância” que leva a tomar partido. Não é o caso.

No decurso do texto o autor usa muitas expressões locais e refere-se a factos por ali passados. Todos estão bem explicados através de notas de rodapé, permitindo a sua perfeita compreensão a quem não está familiarizado com a região, língua e história; o livro inclui um apêndice, “Breve história recente dos Balcãs”, do qual se recomenda vivamente a leitura prévia a quem pouco sabe do que por ali se passou. Parece-me boa ideia começar a leitura do livro por aqui, e depois então, entrar no romance. Neste apêndice, Costa Barreto não trata muito bem as forças das Nações Unidas que ali operaram, refere-se aos bombardeamentos aliados e aos acordos de Dayton, mas omite completamente, o que é estranho, a missão IFOR da NATO (e as seguintes da NATO e da EU), aquela que no fundo, evitou definitivamente o reacender da guerra.

Termino este comentário com uma nota muito pessoal – quase que uma “mea-culpa” – mas que talvez seja subscrita por muitos que também estiveram na Bósnia. A leitura desta história ilustra bem, talvez mesmo melhor do que aquilo que por lá vi, e não foi assim muito pouco (em 1996, 1997, 2002, 2004, 2012), o que a guerra fez a muita gente, milhares de seres humanos, aqui no nosso continente europeu. Sendo certo que nada substitui o contacto directo com a realidade, muitas vezes é preciso ir mais além. Em grande medida o que Miguel Costa Barreto nos dá em parte substancial deste livro é um aprofundar dessa realidade visível.

Sarajevo, o vulcão dos Balcãs“, é uma edição “Chiado Editora” de Setembro de 2012, tem prefácio de Judite de Sousa, formato 13,5x22cm, 500 páginas, um bloco de fotos a cores e alguns mapas a preto e branco que ajudam à compreensão da evolução histórica em que assenta a narração e interessantes elementos de informação como a actual organização política da Bósnia ou o alfabeto cirílico entre outros. ISBN: 978-989-697-588-3.

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