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RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (VII)

Esta série de artigos – RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA – continua e hoje apresentamos mais dois episódios. Entre o caricato e o sério, como sempre! José Manuel Araújo, que serviu 25 anos nas tropas pára-quedistas portuguesas, Sargento Pára-quedista desde 1984, integrou a primeira missão portuguesa na Bósnia e Herzegovina em 1996. Aqui fica a sua visão, a dois tempos descritiva mas também cómica de muito do que por lá viu e passou. Hoje, dois temas “picantes”, férias e uma original revista às cozinhas!

Araújo Bósnia Férias

13 – AS FÉRIAS DA BULIMIA

A missão IFOR, para o 2BIAT, durou quase 7 meses e, inicialmente, não estava previsto que o pessoal, que integrava a força no terreno, pudesse ter qualquer tipo de licença em Portugal. No entanto, ao fim do segundo mês de missão, começou a haver pessoal que veio a Portugal de licença.

Os argumentos para a licença eram, sempre, sustentados na necessidade da resolução de problemas familiares de saúde ou outros.

Houve quem viesse porque lhe nasceu um descendente, o que poderá ser justificável;

Houve quem fosse ao funeral de familiares, compreensível no caso de serem de 1º grau;

Houve quem viesse porque o filho, ainda criança, batia na mãe, o que será, obviamente, risível;

E houve até quem viesse para participar num casamento. O que seria obrigatório se fosse nubente(!) aceitável se pai dos noivos, desculpável se padrinho;

Mas constou e correu no “jornal da caserna”, que houve quem viesse para participar num casamento como simples convidado e isso já é assunto para ser tratado em entrevista privada, com o padre, com a devida sequência no genuflexório.

Claro que o “requerimento” teria referido outra justificação. Mas, é um facto que o retratista de serviço colocou no quadro, em Rogatica, um retrato sobre o assunto (imagem acima).

A partir do 4º mês de missão, quando a força já estava perfeitamente entrosada e a situação no terreno já estava sob controle, o Comando do Batalhão passou a permitir que, aproveitando o avião que garantia a sustentação da força, dentro de certos critérios, houvesse pessoal a gozar licença em Portugal. Houve também casos, pontuais, de elementos que gozaram licença nos países limítrofes, e quem viesse a Portugal através de voos civis.

Ora o Sargento de Reabastecimento, ao 5º mês de missão, achava que também “tinha direito” a vir a Portugal de licença. Mas tinha que encontrar um argumento que fosse justificável e sustentável!

Logicamente o ideal era arranjar um justificação referente a uma doença. Mas era muito cioso do “código de honra” e não iria inventar uma falsa doença. Depois de matutar sobre o assunto, teve uma ideia:

Elaborou um requerimento, que entregou no Comando do Batalhão, em que solicitava o gozo de uma semana de licença em Portugal, com transporte no avião militar, alegando a necessidade de dar assistência à sua cônjuge, que estava com problemas de bulimia na zona púbica….! 

O requerimento foi despachado favoravelmente. O Sargento veio a Portugal, no avião militar. O problema da bulimia foi tratado, pelo menos paliativamente. E, terminada a licença, o Sargento regressou à missão e continuou a desempenhar as suas funções, com redobrado espírito, animo e alegria, agora que a bulimia estava atenuada. 

A bulimia é uma doença, como a maioria das maleitas, de que existe mais que um tipo e a que “atacara” a cônjuge do sargento era, como soe dizer-se em “português corrente”, uma doença do “caralho”…..!!!

14 –  REVISTA!

Quando a tropa está aquartelada acontecem, com periodicidade, geralmente semanal, revistas às instalações, por parte dos diversos escalões de comando. Os comandantes das unidades fazem revistas, publicando, em Ordem de Serviço da unidade, a data e hora e as instalações que serão objecto da sua revista. Geralmente ocorrem à sexta feira, seguindo-se a ida do pessoal de fim-de-semana. Quando as forças se encontram em exercícios, ou em missões, os comandante das forças fazem visitas às instalações, geralmente de carácter operacional, mas não é usual fazerem revista, pelo menos com o formalismo normal.

No aquartelamento de Rogatica o comandante circulava pelas diversas dependências, mas não fazia revista às instalações. Até que um dia resolveu fazer uma revista, inopinada…

Acompanhado do Sargento Chefe do Batalhão, do Comandante da Companhia de Comando e Serviços e do Capelão, dirigiu-se ao local onde funcionava a cozinha, preparando-se para executar uma revista às instalações. Só que eram cerca das onze horas e, na cozinha, estavam em adiantados trabalhos de preparação do almoço para o pessoal, o que implicava que as instalações não se encontrassem nas naturais condições de aprumo e asseio, para serem revistadas. Os caixotes do lixo estavam cheios com os resíduos da refeição a ser preparada e havia a natural desarrumações do material, porque estava a ser utilizado. Para além disso o Sargento que chefiava a equipa de alimentação tinha acordado com muito má disposição, o que se compreende, se se atender que: a missão decorria há mais de um mês, as saudades eram já muitas e então quando se acorda com os sintomas de ter sonhado com a cara-metade e se toma consciência que não se pode aliviar essas “saudades”…  estão reunidas as condições para um dia aziumado…!

Quando o Comandante de Batalhão entrou na cozinha o Sargento que chefiava a equipa de alimentação abeirou-se para saber o que este pretendia. O Comandante de Batalhão começou a referir-se aos caixotes que estavam cheios, à desarrumação e à pouca limpeza que via. O Sargento estava mesmo com muito aziume… e a interpelação do Comandante de Batalhão começou a provocar-lhe “urticária”…Sem paciência virou-se para o Comandante e disse:

– Você vem-me dar cabo da cabeça, com limpezas, a esta hora?

Espetou um pontapé no balde do lixo que estava mais perto, e que virou espalhando o lixo pelo chão e continuou…

– Agora está mais sujo ainda! Olhe faça o que quiser! Vá chatear o “caralho”…!

O Comandante da CCS era um oficial que não tinha transitado da Força Aérea, mas sim vindo do Regimento de Comandos e não estaria ainda habituado à “relação” existentes entre os oficiais e sargentos oriundos do antigo Corpo de Tropas Paraquedistas, que se conheciam todos“ e “passavam todos pela mesma porta e usavam os mesmos paraquedas”… (nos cursos de paraquedismo a instrução é ministrada por sargentos, seja qual for a patente dos instruendos). Quando viu o sargento dar o pontapé no balde e ouviu o que ele disse, fez uma “retirada estratégica” quiçá para não ser “arrolado” como testemunha!

O Capelão, talvez por “deontologia profissional” ou porque os seus ouvidos não poderiam escutar palavras tão pecaminosas, “pirou-se” e o Comandante ficou acompanhado apenas pelo Sargento-Chefe.

O Comandante de Batalhão, meio estupefacto, ficou indeciso sobre o que fazer e que atitude tomar, mas tomou consciência que o sargento tinha acordado mesmo do lado errado da cama, pensou melhor, virou as costas e assim terminou a primeira revista que fez no aquartelamento de Rogatica.

Curiosamente essa revista, para além de ser a primeira, foi também a última…!

José Manuel Araújo

Leia aqui os seis artigos anteriores desta série:

RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (I) 1 – INTRODUÇÃO; 2 – A CEIA DO COMANDANTE [1]

RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (II) 3 – OS SEMÁFOROS DE SARAJEVO; 4 – ALBERTO O CONCERTISTA [2]

RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (III): 5 – A MONDA DOS DENTES; 6 – O QUEIJO DA SERRA [3]

RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (IV): 7 – O ATEU-MOR; 8 – O WHISKY ITALIANO [4]

RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (V): 9- ADULTÉRIO; 10 – O CAMPEÃO [5]

RETRATOS DE UMA MISSÃO NA BÓSNIA (VI): 11 – O FANTASMA DE ROGATICA; 12 – O “RATO” DO TABACO [6]