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OS 180 ANOS DA LEGIÃO ESTRANGEIRA

Corpo militar mítico a Legião Estrangeira francesa assinala em 30 de Abril de 2011, 180 anos de existência (*). Muitos portugueses serviram e servem na Legião e é lembrando-nos desses compatriotas que hoje aqui escrevemos sobre estes militares que se tornaram franceses “pelo sangue vertido” e não por nascimento.

O Estandarte Nacional do 6.º Regimento Estrangeiro de Engenharia (hoje extinto), em 1996 na Bósnia-Herzegovina. [1]

O Estandarte Nacional do 6.º Regimento Estrangeiro de Engenharia (6.º REG, hoje extinto), em 1996 na Bósnia-Herzegovina.

Neste último dia de Abril, comemora a Legião, onde quer que se encontre, quartéis ou campos de batalha, o combate de Camerone que teve lugar no México em 1863 e se tornou a data marcante deste corpo militar. Dificilmente se encontra força militar sobre a qual mais se tenha escrito e se continue a escrever. A Legião tem de facto não só características muito particulares como…uma boa máquina de divulgação. Sempre teve, como deve ser em qualquer corpo militar que viva exclusivamente de voluntários, e não há nada de errado nisto. Aliás nos dias que correm, com o chamado “profissionalismo” a alastrar por muitos países, entre os quais o nosso, mesmo aqueles que no passado criticavam este tipo de “propaganda”, hoje têm que a assumir.
Outros corpos militares têm um “impacto global” que podemos considerar semelhante, como o Corpo de Marines dos EUA, os Gurkas ao serviço do Reino Unido e talvez até mesmo a Legião Espanhola, mas “a” Legião e tudo o que a rodeia, é única. Não que seja em termos absolutos “melhor” que este ou aquela outra força, mas tem características singulares. É uma unidade do Exército Francês, dispondo na actualidade de “7.699 homens distribuídos da seguinte forma: 413 oficiais, 1.741 sargentos e 5.545 legionários constituindo 11 regimentos“, e é muito fácil ter acesso a muita informação oficial, mesmo em português, pelo que não vamos aqui repeti-las. Basta consultar o site oficial: Legião Estrangeira [2].
Tradicionalmente as nacionalidades que constituem a Legião, 136 na actualidade, costumam ser um reflexo das crises mundiais, sem olhar a credos ou ideologias políticas. Assim depois da Revolução Soviética e da conquista do poder pelos comunistas, muitos russos “brancos” convergiram para a Legião; depois da derrota comunista em Espanha muitos “republicanos” para escapar ao cativeiro passaram a envergar a farda da Legião; na guerra da Indochina e Argélia francesas os legionários eram maioritariamente alemães derrotados na 2.ª guerra mundial; a queda do Império Colonial português terá aumentado muito o número de portugueses ao serviço da França; uma última vaga de voluntários europeus iniciou-se com o desmoronamento da “Europa de Leste”.

Aeroporto de Sarajevo, 1996. O Sargento Gonçalves (primeiro à direita), português ao serviço de França no 6.º Regimento Estrangeiro de Engenharia e dois legionários (mecânicos) posam para a foto com o Sargento-Ajudante Faria, depois de umas horas de trabalho em proveito das forças porutuguesas na Bósnia. [3]

Aeroporto de Sarajevo, 1996. O Sargento Gonçalves (primeiro à direita), português ao serviço de França no 6.º Regimento Estrangeiro de Engenharia e dois legionários (mecânicos) posam para a foto com o Sargento-Ajudante Faria, depois de umas horas de trabalho em proveito das forças portuguesas na Bósnia.

Em relação aos portugueses na Legião Estrangeira Francesa, pena que não haja estudo sobre a temática, também a forte imigração dos anos 60 – curiosamente alguma para fugir à Guerra do Ultramar – levou, por um lado, alguns compatriotas apanhados nas fronteiras a juntarem-se à Legião, a combater pela França (e obter a nacionalidade) e por outro, a que alguns filhos dos emigrantes dessa geração, mais tarde – a partir dos anos 90 – viessem eles também na Legião, agora na época das “missões de paz”, a verter o seu sangue pela terra que os acolheu. A geração dos portugueses que rumaram a França no período posterior ao 25 de Abril de 1974, coube-lhe combater nas intervenções pós-coloniais da França do Chade ao Zaire (Kolwezi), passando mais tarde pela Guerra do Golfo. De recordar que durante muito tempo em Portugal servir em forças militares estrangeiras não era propriamente bem aceite. Quem se alistava na Legião, no regresso, devia manter-se discreto.

No caso das chamadas “missões de paz”, não nos devemos iludir com as palavras. França tem sido dos países mais empenhados nestas campanhas, integrando com milhares de militares sucessivas forças de âmbito ONU, NATO e EU, sofrendo centenas de mortos e feridos, parte dos quais legionários.

Ao longo da minha carreira militar contactei pontualmente com portugueses que tinham servido ou serviam na Legião e também li várias das suas publicações oficiais e livros escritos por antigos legionários – um dos quais português, já lá iremos – escritores profissionais e jornalistas. Tenho assim como alguns dos que nos lêem, estou certo, uma imagem oficial da Legião e outra talvez mais crua, do dia-a-dia do legionário. Nunca nos devemos esquecer que a Legião existe para fazer a guerra. Sempre que tal é necessário, a República Francesa não se faz rogada em empregar estes seus militares, muitas vezes em primeiro lugar e nos locais mais difíceis.

Em 1966 José da Câmara Leme publica este livro que mostra a Legião em combate na Argélia Francesa sob o ângulo do legionário (soldado).

Em 1966 José da Câmara Leme publica este livro que mostra a Legião em combate na Argélia Francesa sob o ângulo do legionário (soldado).

Nesta data de 30 de Abril de 2011, “chamo aqui” e faço algumas observações sobre dois temas relativos aos portugueses na Legião que me tocaram: “Chegar é já em si bastante“, livro de José da Câmara Leme que serviu na Legião entre 1955 e 1960 tendo combatido na Argélia; Cerimónia de Camerone 1996 em Railovac / Bósnia-Herzegovina. O primeiro como exemplo da vida de um português na Legião “crua”, por vezes até brutal, sem trabalho de relações públicas a moldar a realidade; o segundo como memória do peso que tem o culto da tradição na vida deste corpo militar de elite – mesmo em operações – e de uma jornada de convívio, pelo encontro de militares portugueses que tinham isso mesmo a uni-los, serem portugueses e militares, uns ao serviço do seu país, outros profissionais ao serviço de França.

“Chegar é já em si bastante”
O livro de José da Câmara Leme, edição Bertrand de 1966, foi-me oferecido por volta de 1982 ou 83 por um antigo superior hierárquico, prematuramente falecido num salto em pára-quedas: Luís Noronha Krug. Na altura o então Capitão quis provar ao Alferes que a Legião não  era um “mar de rosas”, uma perfeição, mas tinha que ser vista como um corpo militar com defeitos e virtudes como todos os outros. Muito lhe agradeci o livro porque é sem dúvida uma obra escrita por quem combateu, no qual a dura realidade da guerra e das relações humanas entre gente tão diferente, está bem retratada. Deita algum realismo sobre a visão heróica que muitos têm dos corpos militares e também da Legião, naturalmente. Vista do ângulo do legionário, do soldado, o que entre nós é bem raro. E faz se não toda a diferença, pelo menos muita diferença. Nem todos o gostam de admitir mas o “militar” não é bem “um” apenas. O mundo do soldado é diferente do percepcionado pelo sargento e destes aos oficiais, outras diferenças de ângulo são notórias. E os soldados escrevem pouco, os sargentos um pouco mais e os oficiais muito mais.
É difícil escolher uma passagem do livro porque muitas e muitas mereciam ser aqui relidas, mas escolhi esta, referente a mais um combate na então Argélia Francesa.
O dispositivo a adoptar pela companhia desenhava-se com nitidez: haveria que ocupar a primeira e a terceiras linhas (correspondentes a elevações de terreno). A segunda pertencia por enquanto ao F.L.N. (Frente de Libertação Nacional, os guerrilheiros argelinos) (…) avantajados pela sua situação cimeira os legionários da primeira linha desceriam até à segunda. Nessa altura já que não lhes seria possível fugir para os lados, os guerrilheiros refugiar-se-iam no abaulado entre a segunda e a terceira. Aí, nesse refúgio de anedota, ficariam à disposição da França e morreriam naturalmente.
Este o pensamento do comando. O dos legionários, embora subordinado àquele, era de natureza bem diferente. Não tinha a grandeza, a elevação, nem a generosidade do outro. Apresentava-se mesquinho, superficial e egoísta. Podia resumir-se assim: «Quantos morreremos durante o assalto à segunda linha? Quantos morreremos ainda quando descermos o abaulado entre a segunda e a terceira, a fim de matarmos, um a um, os sobreviventes que não se renderem?»
Mas que se não duvide da eficiência dos legionários. Que interesse tem um marceneiro em polir um pedaço de madeira até à suavidade? O mesmo que um legionário em ferir um guerrilheiro até à morte. Não há qualquer especulação nisto. Tudo se resume a uma questão de profissão e competência. E os legionários eram profissionais competentes (…)
(…) Media-se agora o êxito do assalto. Recuperavam-se as armas e despejavam-se os bolsos. Cuspia-se nos cadáveres e maltratavam-se os prisioneiros. Triunfava a vingança, a saciar-se. Ninguém lhe recusaria legitimidade. Em que consistia um inimigo morto senão um perigo de morte que fora eliminado? Se tivesse podido…O querer não lhe faltara, somente a habilidade e a sorte, azares da guerra, essa roda que roda. Talvez um dia rodasse de maneira diferente…Quanto aos prisioneiros, com facilidade se adivinhavam também neles os responsáveis por aquelas balas que quase nos iam matando. Razoável, portanto, que se vingassem. Pena que não pudessem pagar-lhe com juros. Chegava a ser desumana a obrigação de os tratarem com moderação. Mas umas palmadinhas não lhes pesariam demasiado. Habituá-los-ia, mesmo, ao interrogatório de logo à noite. Logo à noite receberiam pelo que fizeram e pelo que pretenderam fazer. Ah, que era justo!

Como se vê José da Câmara Leme não evita, em 1966, aquilo que ainda hoje em França é quase tabu. Não é um livro que “faça jeitos” à Legião, embora em muitas passagens ela saia com uma imagem de competência e profissionalismo também há o seu contrário. É um livro que mostra os sacrifícios que a guerra impõe aos combatentes e a sã camaradagem que une um punhado de homens, vindos cada um do seu país e apenas juntos pela vontade de enterrar o passado, subordinados a um rígida disciplina que lhes é imposta sem contemplações e que, quer queiram quer não, os torna em profissionais competentes.

José da Câmara Leme (à direita) no Vietname em 1968, acompanhado por Domingos Pereira um oficial luso-americano. [4]

José da Câmara Leme (à direita) no Vietname em 1968, onde esteve como jornalista, acompanhado por Domingos Pereira um oficial luso-americano.

Nascido em Moçambique em 1927, Câmara Leme integrou já como militar uma expedição a Macau por alturas da chegada às fronteiras da colónia portuguesa das topas comunistas e em 1955 alista-se na Legião tendo combatido na Argélia até 1960. Trabalhou em Angola na segurança da Companhia Mineira do Lobito, depois do que, já na Metrópole, publica este “Chegar é já em si bastante”. Em 1968 ao serviço do jornal “Diário Popular” de Lisboa, conheceu outra guerra, voltou a arriscar a vida numa guerra, mas agora como jornalista cobrindo inúmeros combates: Vietname. Em 1970 publica novo livro, “Repórter Português no Vietname”. Passagens destas reportagens e do livro são aliás a quase totalidade de capítulo alusivo ao Vietname do livro “Crónicas de Guerra” de José Rodrigues dos Santos (Lisboa, 2002).

A antiga base aérea jugoslava de Rajlovac nos arredores de Sarajevo foi ocupada pelas forças da NATO. A Legião tratou de obter o melhor cenário possivel para a cerimónia de Camerone. [5]

A antiga base aérea jugoslava de Rajlovac nos arredores de Sarajevo foi ocupada pelas forças da NATO. A Legião tratou de obter o melhor cenário possível para a cerimónia de Camerone.

Dois Mig-21 foram redecorados com as cores da Legião (o verde e o vermelho), o seu simbolo (a granada) e este com a inscrição " [6]

Dois Mig-21 foram decorados com as cores da Legião (o verde e o vermelho), o seu símbolo (a granada) e este com a inscrição “Baalbek”, o lema do 6.ºREG, numa alusão à localidade na Síria onde esteve aquartelado o 6.º Regimento Estrangeiro de Infantaria, cujas tradições foram assumidas pelo 6.ºREG.

Camerone em Railovac / Bósnia-Herzegovina
Talvez porque conhecem bem a dureza da vida em campanha, os legionários não se fazem rogados nem poupam quando se trata de festejar! Também o facto de serem unidades que passam grande parte da vida em operações, e mesmo quando não estão no exterior a natureza da sua composição, com uma maioria de gente sem família ali “ao lado”, nem habitação particular para o “regresso a casa ao fim do dia”, tornam, estas ocasiões mais celebradas.

A cerimónia inicia-se com as companhias, uma a uma, a entrar na parada. [7]

A cerimónia inicia-se com as companhias, uma a uma, a entrar na parada.

Na Legião oficiais e sargento usam o boné preto e os legionários o conhecido "képi blanc". Todos os sargentos são oriundos de legionários. [8]

Na Legião oficiais e sargentos usam o boné preto e os legionários o conhecido “képi blanc”. Todos os sargentos são oriundos de legionários.

A formatura está pronta é feita a apresentação às altas entidades. [9]

A formatura está pronta é feita a apresentação ao Estandarte Nacional. Cada país tem as suas tradições e aqui, ao contrário de Portugal, os convidados e altas entidades já estão presentes quando entram as forças e o Estandarte.

As altas entidades, francesas e estrangeiras, entre os quais o Comandante das Forças Terrestres a IFOR/NATO, saúdam o Estandarte Nacional. [10]

As altas entidades, francesas e estrangeiras, entre os quais o Comandante das Forças Terrestres a IFOR/NATO, saúdam o Estandarte Nacional.

Em 1996 quando os militares portugueses se envolveram na missão de paz da NATO na Bósnia-Herzegovina, por coincidência, estabeleci contacto com portugueses que serviam no 6.º Regimento Estrangeiro de Engenharia. Logo nos primeiros dias da operação, ainda com muito pouca gente no terreno, beneficiamos do apoio de uma das companhias deste regimento (julgo que a 4.ª), e em concreto de um sargento português (Gonçalves) que com o seu pessoal (mecânicos) resolveu alguns problemas insolúveis para nós naquela data. Em algumas ocasiões visitamos depois a companhia e fomos (muito bem) recebidos pela totalidade dos seus quadros (do capitão ao sargento mais moderno). Em 28 de Abril de 1996 uma delegação portuguesa foi convidada para participar nas comemorações de Camerone desse ano. As imagens que ilustram este texto referem-se a essa ocasião e não necessitam de grande explicação. Mesmo em campanha a Legião assinala o seu dia festivo com a maior dignidade possível e não poupa esforços (nem orçamento!) para que tudo decorra sem falhas na parte do cerimonial, e, terminado este…completamente à vontade na seguinte: a confraternização.

Terminada a cerimónia militar, a confraternização que se seguiu juntou os portugueses. A "mesa farta" naquelas circunstâncias (em operações) com carnes variadas, lagosta, e muito mais, foi uma completa surpresa. [11]

Apetece dizer, “quem não é para comer não é para combater”. A “mesa farta” naquelas circunstâncias (em operações) com carnes variadas, lagosta, e muito mais, foi uma completa surpresa para os portugueses, novatos nestas andanças . Esteja em que canto do globo estiver, a intendência da Legião não brinca em serviço.

Foi uma ocasião de franco convivio em terras distantes que muito sensibilizou os portugueses de ambos os Exércitos. [12]

Foi uma ocasião de franco convivio em terras distantes que muito sensibilizou os portugueses de ambos os Exércitos. As operações exteriores são exigentes em muitos aspectos, por vezes dramáticos, mas também têm bons momentos, este foi um deles.

Camerone 1996 chegava o fim. No dia seguinte quem aqui esteve voltava ao dia-a-dia em operações. Para a delegação portuguesa, muitos dos quais iriam permanecer 1 ano da Bósnia, foi um momento de descompressão e de contacto com outra realidade. [13]

Camerone 1996 chegava o fim em Rajlovac. No dia seguinte quem aqui esteve voltava ao dia-a-dia em operações. Para a delegação portuguesa, muitos dos quais iriam permanecer 1 ano da Bósnia, foi um momento de descompressão e de contacto com outra realidade.

Libertados naquela ocasião festiva, a título excepcional, da obrigação de falar francês, foi em português que esta última parte decorreu e foi nítido o sentimento de grande alegria que se gerou na ocasião.

Deste modo singelo, mostrando pela pena de José da Câmara Leme a realidade da guerra na Argélia no final dos anos 50 e pelas fotografias dos anos 90, uma ocasião de confraternização, à margem da missão na Bósnia, aqui fica a nossa homenagem aos portugueses que serviram e servem na Legião Estrangeira do Exército Francês.

(*) Note-se que a Legião Estrangeira foi criada em 9 de Março de 1831 e por isso assinala este ano de 2011 os 180 anos de existência. Acontece que este corpo de tropas tem a sua festa principal em 30 de Abril, data do combate de “Camerone”, acção que teve lugar como é acima referido em 1863. Ver aqui história da Legião no site oficia [14]l.