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ESTATUTOS DOS POLÍCIAS

Num curto período de menos de um mês vieram a público duas propostas de revisão de estatutos de dois corpos policiais, a saber, da Polícia de Segurança Pública (PSP) e da Polícia Judiciária (PJ). Independentemente do seu mérito, estas duas propostas têm em comum o facto de apresentarem uma inversão dos respectivos percursos históricos e um corte com o modelo de segurança vigente.

Será que a Policia Judiciária e Polícia de Segurança Pública vão mesmo mudar? E em que direcção? [1]

Será que a Polícia Judiciária e Polícia de Segurança Pública vão mesmo mudar? E em que direcção?

Comecemos pela PJ.

A PJ até 1927 e ainda com a designação de Polícia de Investigação Criminal (PIC) integrava-se no Ministério do Interior tendo a sua tutela a partir daquela data passado para o Ministério da Justiça e dos Cultos, voltando no entanto a depender do Ministério do Interior até que em 1945, já com a denominação de Polícia Judiciária, passa para o Ministério da Justiça.

Os seus directores-gerais foram até ao ano 2008 sempre magistrados judiciais e os restantes dirigentes, magistrados judiciais ou do Ministério Público (MP). Os seus inspectores, durante largo período de tempo foram simultaneamente delegados do MP.

O relacionamento entre a PJ e as magistraturas foi até finais dos anos noventa muito estreito. No entanto, a partir daquela data e à medida que os dirigentes dos diferentes departamentos e directorias passaram a ser não magistrados, o que culminou com a nomeação de um quadro de carreira da própria PJ para director nacional em 2008, tem levado a um evidente e progressivo afastamento entre aquela polícia e as magistraturas, ao que parece desejado pela PJ.

A agora proposta de integração da PJ na dependência orgânica do MP constitui sem dúvida uma surpresa e um corte com o caminho que aquela polícia tinha percorrido nos últimos anos, no sentido da sua autonomia relativamente ao MP e a todas as magistraturas.

Um outro dado a ter em consideração quando se aborda este tema é o que se prende com a inclusão da PJ no Sistema de Segurança Interna que data de 1987, com a primeira versão da Lei de Segurança Interna (LSI).

A inserção sistémica daquele corpo policial no actual quadro de segurança, positivado pela (LSI), dele fazendo parte integrante como “um serviço que exerce funções de segurança interna”, não pode ser descurado. A proposta de alteração da sua dependência para o Ministério Público e embora indirectamente, de substração ao sistema de Segurança Interna, constitui um corte radical com o quadro vigente, quando a segurança se apresenta cada vez mais como um sistema abrangente e multidisciplinar. A retirada de uma das suas componentes operacionais e a sua passagem para um outro sistema, apenas dificultaria a coordenação entre os diversos actores do modelo.

Um outro elemento não menos despiciendo na abordagem da proposta da PJ é o que se prende com a pretensão de um tratamento diferenciado, enquanto OPC, com o argumento da sua independência face ao poder político.

A PJ, como todos os demais OPC, depende funcionalmente do Ministério Público, mas não se confunde com este, dadas as suas diferentes naturezas.

Corpo integrado na administração directa do Estado, como sucede com todos os demais corpos com funções policiais dependem organicamente de um membro do Governo, no caso o Ministro da Justiça.

Se até 1995, quando se dá o alargamento da investigação criminal na área da droga, à GNR e PSP ou mesmo e com maior rigor, até ao ano 2000, data da primeira Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC), em que a atribuição de competências de investigação criminal à GNR e à PSP, foram substancialmente aumentadas, esta proposta poderia ter algum vencimento, neste momento, quando a PJ deixou de ser verdadeiramente a única polícia de investigação criminal, perdendo cerca de 80% dos crimes investigados para os outros OPC, a solução levantaria no mínimo, a dúvida sobre o tratamento a dar aos demais OPC.

Passemos agora ao caso da PSP.

Aqui também a proposta de alteração estatutária vai manifestamente ao arrepio do seu percurso histórico.

Em linhas muito gerais, a PSP é a herdeira histórica da Polícia Cívica que remonta ao reinado de D. Luís no ano de 1887, embora e em bom rigor a PSP tenha sido criada em 1927.

Como decorre do próprio nome original, os seus agentes eram conhecidos por cívicos. A sua matriz civilista levou a que até muito tardiamente, só em casos excepcionais os seus agentes fossem portadores de armas de fogo.

Ao longo da história a PSP sofreu várias reestruturações, mantendo a sua natureza urbana e civil, ressalvado o período do Estado Novo em que assume progressivamente contornos militarizados, tendo na reestruturação de 1953 passado a ser definida como um “organismo militarizado”, situação que se manteve até meados dos anos oitenta.

Em 1982 é reformulado o regulamento disciplinar, começando desta forma o afastamento da Instituição Militar, a que se seguiu a criação da Escola Superior de Polícia para formação de oficiais de polícia e a revisão do estatuto do pessoal em 1985, reflectindo uma nova filosofia policial em progressiva ruptura com o modelo militarizado vigente.

A partir de 1990 os profissionais da PSP passam a poder constituir associações socioprofissionais que no ano 2000 dariam origem a sindicatos.

Desde início dos anos noventa o Comando-Geral é substituído por uma Direcção Nacional, os seus directores deixam de ser oficiais do Exército, passando a ser civis de reconhecida idoneidade ou quadros da própria Polícia, os oficiais do Exército que prestavam serviço na PSP, puderam optar pela sua integração ou regressar ao Exército.

Em 1999 a Lei 5/99 de 27 de Janeiro, transforma a PSP numa “força de segurança civil”.

Estes e muitos outros aspectos inserem-se numa evolução institucional que foi aproximando a PSP das suas características originais da Polícia Cívica, afastando-a consequentemente da matriz militarizada e simultaneamente, acercando-a da generalidade das polícias europeias.

Aqui chegados é natural considerar que a proposta de estatutos do pessoal da PSP que recentemente veio a público, constitui um corte profundo com a evolução civilista que esta Polícia foi construindo ao longo dos últimos trinta anos e representa uma inversão da tendência não militarizada que se vinha consolidando.

Contudo não será despiciendo sinalizar que numa ou noutra ocasião, não muito distante, houve a intenção por parte de alguns oficiais da polícia, de aproximação ao estatuto militar da GNR, o que poderá constituir uma explicação para a proposta ora apresentada.

A parte programática da mesma, consubstanciada nos seus primeiros artigos, é uma cópia do Estatuto da Condição Militar, com outro nome, a “condição policial”.

Nela, inserem-se deveres nitidamente militares, como “a disponibilidade permanente ainda com sacrifício de interesses pessoais” ou “a sujeição a riscos mesmo com o sacrifício da própria vida”, etc. para culminar num Juramento de Bandeira, embora aqui com um outro nome (juramento policial).

Também no tocante às carreiras se nota uma aproximação à carreira militar com a criação de mais postos (agente-coordenador e chefe-coordenador), ao contrário do que sucede nos estatutos policiais civis, quer no nosso país, quer no estrangeiro, onde as carreiras tendem a ser menos verticalizadas.

Neste âmbito ainda, uma outra aproximação é por demais evidente, refiro-me aos cursos de promoção que passam a vigorar para acesso aos postos de subintendente, de chefe-coordenador e agente-coordenador, para além dos outros já existentes (superintendente e de chefe), o que torna a carreira policial muito próxima da carreira militar também no que tange a este tipo de formação.

A criação de uma situação ex-novo nos regimes estatutários da administração pública portuguesa, como são o de um novo conceito de pré-aposentação e o da pré-aposentação na efectividade de serviço, para além de constituírem uma novidade, apresenta-se também como uma tentativa de cópia do regime de reserva dos militares.

Um outro ponto que deverá ser equacionado relativamente à alteração de natureza civil da PSP, para uma próxima da militar, como a consagrada na proposta, embora esta não o refira explicitamente, respeita à adulteração do modelo tendencialmente dual português, com uma força de segurança de natureza militar, a GNR e outra civil, a PSP.

A ter vencimento esta proposta, os profissionais da PSP aproximar-se-iam do estatuto militar dos militares da GNR, o que poria em causa a complementaridade do modelo existente, defendida por diferentes regimes e vários governos, desde a criação da Polícia Cívica, a par da Guarda Real da Polícia, no Séc. IXX.

Neste pressuposto, haveria ainda que equacionar o que fazer com a liberdade sindical dos profissionais da PSP, entre muitos outros aspectos que se contradizem com a actual natureza cívica daquela Polícia.

Por último, uma questão transversal às duas propostas referidas (PSP e PJ). Da mesma forma que a alteração proposta para a PJ teria reflexos noutros OPC, também esta proposta estatutária da PSP ao criar “uma condição policial”, teria, por uma questão de coerência, que ter em conta que corpos policiais e polícias no nosso país, não são apenas os da PSP, o que implicaria que a concepção de uma “condição policial” deveria ser estendida a todos quantos são polícias, o que poderá não ser tarefa fácil no complexo quadro policial português.

 

Lisboa, 23 de Abril de 2015

Carlos Manuel Gervásio Branco