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ANTÓNIO AUGUSTO, UM PORTUGUÊS NA GRANDE GUERRA

Este artigo que nos chegou de um velho amigo e camarada de armas, é inovador aqui no “Operacional”. O neto de um português que combateu na Grande Guerra em França, decidiu homenageá-lo. Ainda bem que escolheu o nosso site para o fazer.

António Augusto, 1.º Sargento do Exército Português em 1940 [1]

António Augusto, 1.º Sargento do Exército Português em 1940

António Augusto, 2.º Sargento na Grande Guerra, não foi herói reconhecido pelo público nem alcançou notoriedade pelo posto. Foi um entre milhares que combateu contra os Alemães, em França por Portugal. As suas pequenas histórias que o Hernâni Martins aqui relembra mostram bem uma parte da guerra, aquela que só “quem lá andou” sabe contar e que nos trazem uma realidade quase e sempre esquecida pela história.

As guerras, assim como as actuais missões onde os portugueses estão envolvidos e algumas são mesmo guerras, ninguém duvide, acabam na maioria das vezes por ser contadas de um modo algo distante. Nos dias de hoje, por cá, os intervenientes que as descrevem em “primeira-mão” ou tiveram um posto relativamente elevado (a maioria são/foram oficiais), ou são jornalistas que têm acesso limitado ao acontecimentos. Embora no estrangeiro haja reportagens notáveis sobre diversos conflitos, no caso português são raríssimos os jornalistas que passam mais que uma semana em reportagem com os nossos militares. Nem sei se durante todo este ano, por exemplo, terá havido algum caso! Deste modo a guerra acaba por ser passada a escrito por oficiais que estão não só de algum modo condicionados no que escrevem, como lhes é difícil sentir o mesmo que um sargento ou um soldado.

Os conflitos não se resumem às “botas no chão”, bem sabemos que têm direcção politica e estratégica e que os níveis operacional e tácticos carecem de determinados conhecimentos  para serem explicados. Mas só isto também não traduz a realidade. Porque, depois, quem escreve a história para os vindouros, habitualmente académicos, acabam por basear-se nos relatos escritos e em dados (dificilmente) cedidos pela instituição militar. Para a posteridade fica uma realidade que não raramente esquece  como foi a guerra ao nível do sargento ou do soldado. Aqui achamos que isso também é importante.

É nesse sentido que o trabalho do Hernâni Martins foi recebido de braços abertos no “Operacional”. A guerra como ela lhe foi contada por quem lá andou. Não se julgue que se tratam de revelações bombásticas ou escândalos! Não, é “apenas” uma parte da guerra. A que António Augusto gostava de contar ao seu neto.


António Augusto (1899-1994), 1º Sargento do Quadro do Exército Português

António Augusto nasceu em Portugal, Rio de Onor, Bragança, a 11 de Julho de 1899, filho de João António, militar da Guarda Fiscal, e de Maria Ricardina Coelho.
Incorporou o Exército Português em 08 de Janeiro de 1916 e integrou o CEP, Corpo Expedicionário Português, tendo embarcado para França em 12 de Setembro de 1917. Foi na altura um dos últimos militares portugueses a deixar território francês, tendo embarcado no porto de Cherburg em data incerta e desembarcado em Portugal a 10 de Julho de 1919, a bordo do paquete Pedro Nunes.

Em serviço na 6ª Companhia, foi premiado no tiro com a espingarda Mauser. Sócio Combatente n.º 688 da Liga dos Combatentes da Grande Guerra.
É detentor das seguintes medalhas:
Medalha Campanhas do Exército Português, legenda “França 1917-1918 “, ordem do exército Nº 10 – 1ª Série.
Medalha da Vitória – ordem do exército Nº 23 – 1ª Série.
Medalha de Mérito Militar do Exército Português, 3ª classe de comportamento exemplar.
Medalha Militar de Ouro do Exército Português, da classe de comportamento exemplar, ordem do exército Nº 14 – 2ª Série.

Foi-lhe atribuído o posto de 1º Sargento em 27 de Setembro de 1929 e à época, foi um dos militares mais louvados do Exército Português, registando 8 louvores na sua caderneta, na sua maioria (7) por ordem dos vários Generais Comandantes da Região Militar Norte.
Afastado do serviço activo em 1959 por imposição do limite de idade.

Casou em 1926 com Jordelina Augusta Ferreira, de quem teve um filho, António Ferreira Martins. O seu único neto, Hernâni Martins, é o redactor desta pequena e necessariamente modesta biografia.

Homem recto e justo, temível para os seus inimigos, detentor de uma mansidão e generosidade infinda para os seus amados, assim sempre pautou o seu comportamento este militar que serviu Portugal com dedicação e coragem, tanto em serviços no território nacional, como em França em teatro da 1ª Guerra Mundial.

Ainda que integrando um leque de outras figuras familiares de grande importância didáctica e educativa, António Augusto constituiu uma referência muito forte para todo o clã e para o aqui redactor, que na sua infância muitas vezes sentado nos seus joelhos, continuamente lhe pedia para contar as suas peripécias “da Guerra”, que o divertiam e o transportavam maravilhado para outros locais no mundo, outras realidades, tão longe e diferentes da doce existência que entretanto conhecia.
Posteriormente, estes relatos foram também tema incontornável de almoços e jantares de família, onde invariavelmente era pedido que contasse “uma das histórias da guerra”.
A partida de António Augusto foi uma perda irreparável para a família.
O homem que sobreviveu a tiros e estilhaços de obuses, veio a falecer a 07 de Julho de 1994 juntamente com a esposa Jordelina (alguns dias depois), no seguimento de um acidente de viação numa insuspeita rua do centro do Porto, enquanto viajava num mini-autocarro de um Centro de Dia para idosos.

Paz à alma deste grande homem, e obrigado por tudo avô querido!

António Augusto em França na 1.ª Guerra Mundial.

António Augusto em França na 1.ª Guerra Mundial.

"1917 - Embarcou para França a fim de fazer parte do CEP (Corpo Expedicionário Português)...1919 - Regressou a Portugal desembarcando em Lisboa em 10 de Junho..." [2]

"1917 - Embarcou para França a fim de fazer parte do CEP (Corpo Expedicionário Português)...1919 - Regressou a Portugal desembarcando em Lisboa em 10 de Julho..."

A carreira militar de António Augusto, promoções e colocações. [3]

A carreira militar de António Augusto, promoções e colocações.

Sócio n.º 688 da Liga dos Combatentes [4]

Sócio Combatente n.º 688 da Liga dos Combatentes, organização fundada exactamente para auxiliar os veteranos da Grande Guerra que passavam por dificuldades extremas depois de desmobilizados.

Dessa forma, escutadas tantas e tantas vezes e gravadas na minha memória, aqui ficam algumas dessas histórias, maioritariamente na 1ª pessoa, que ao longo de uma vida ouvi contadas com emoção e humor:

1 – As “ovelhas”
A 1ª guerra mundial era essencialmente uma “guerra de trincheiras”.
Estas serpenteavam pelas linhas de combate, e era comum a posse alternada das mesmas, por conquista, entre aliados e alemães.
A trincheira que de momento estava em n/ poder, poderia ter estado na n/ posse dos alemães na semana passada, e vice-versa.
Por vezes a nossa trincheira de linha da frente distava poucos metros da trincheira de linha da frente dos alemães.
Quando os pelotões e companhias estavam desfalcados de ambos os lados, havia um alto-ao-fogo oficioso…
Ninguém queria atirar granadas e ou disparar, porque de facto não tinham meios para levar a cabo um avanço, não queriam levar também com as granadas ou fogo do inimigo, nem tinham a certeza de poder conter um eventual ataque.
Daí, não era benéfico para qualquer das partes despoletar reacções.
Nós chamávamos-lhes “boches” (famosa marca Bosch) e eles chamavam-nos carneiros e/ou ovelhas, dado as várias camadas de lã dos capotes que havíamos levado de Portugal (Covilhã, Seia, Serra da Estrela, etc.), confeccionados por vezes com próprio pelo de ovelha encaracolado, virado para o exterior.
Era perfeitamente possível ouvir os alemães, tal como eles nos ouviam a nós.
Assim, era comum, em pleno teatro de guerra, no silêncio da noite, ouvirem-se portugueses verbalizar para a trincheira do inimigo: – Ó “boche” !!!
A que invariavelmente se seguia uma resposta do outro lado: – Méééééé!!!!!

Soldados portugueses em França no decurso da Grande Guerra. [5]

Soldados portugueses em França no decurso da Grande Guerra.

2 – O “cigarete”
A qualquer militar português que capturasse um militar alemão, era concedida uma licença de 1mês a gozar em Portugal!
Era um prémio apetecido…
Como já dito, por vezes a nossa trincheira de linha da frente distava poucas dezenas metros da trincheira de linha da frente dos alemães.
Naturalmente, não havia militares suficientes para estarem ombro a ombro nas trincheiras, por vezes só havia um militar cada 10 ou 15 metros, que não conseguiam ver o que o que colega do lado fazia, …
Nós estávamos melhor abastecidos em termos de comida e outros bens de consumo.
Ao contrário dos alemães, tínhamos tabaco suficiente, água, e o nosso pão era bom e “branco”, ao contrário do pão alemão que era “negro como carvão”.
Os alemães cobiçavam os nossos cigarros e o nosso pão.
Por vezes, havia tentativas de transformar essa cobiça em capturas de militares alemães.
Fruto do nosso generalizado e total domínio da língua alemã, era então sussurrado a partir da nossa trincheira:
– Ó “boche”!… “Cigarete”?… “Bróte” (pão)?
Resposta sussurrada mais comum do lado alemão:
– Ja bitte! (sim, por favor)
Militar português (generalizado e total domínio da língua alemã) :
– Tens “Vassa”?? (tens água?)
Militar alemão:
– Ja… (sim).
Nesta altura, normalmente ambos arriscavam o contacto visual, e acediam ao degrau de tiro só o estritamente suficiente e até com um saco de areia por cima do capacete. O militar alemão mostrava um cantil, e o português mostrava cigarros e pão. O militar português mostrava um saco de serapilheira onde punha os cigarros e o pão, e fazia gestos de troca e que se deviam encontrar a meio-caminho das trincheiras.
Quando havia acordo, ambos os militares partiam um para o outro, muito cautelosamente, a rastejar, mão á vista…
O alemão trazia um cantil na mão e o português um saco igual ao que anteriormente tinha mostrado, com os cigarros…, o pão… e uma pistola Savage !!

Prisioneiros alemães guardados por militares portugueses. [6]

Prisioneiros alemães guardados por militares portugueses.

3 – A “pá”
Certo dia, uma peça de artilharia portuguesa que integrava a coluna em que eu seguia, ficou atolada na lama.
Um habitante local (francês) assistia à passagem da coluna da cerca da sua casa. Não me recordo bem porquê, mas não havia ferramentas disponíveis naquele momento. Um soldado dirige-se ao camponês e começa a fazer gestos como se estivesse a atirar carvão para uma caldeira, e dizendo: – Pá, uma Pá!!.
O cidadão francês exprime-se:
– Pardon, je ne comprend PAS! (desculpe mas não entendo!)
Fruto do nosso já aqui referido, generalizado e total domínio da língua francesa, a resposta do nosso soldado foi pronta:
– Poois! É isso mesmo! Pá! Uma PÁ é o que eu quero!!

4 – O “queijo”
Também se fizeram algumas maldades…
Por algumas vezes fiquei aboletado em casas particulares. Poucos eram os alimentos que os cidadãos franceses eram obrigados a fornecer, já que as dificuldades eram para eles também muitas. Contudo, estes tentavam o seu melhor no sentido de nos propiciar boa mesa.
Certo dia, eu e mais uns 4 companheiros iniciamos mais um aboletamento.
Estávamos cheios de fome. Logo no primeiro almoço, a dona da casa, uma francesa jovem e simpática, fazia o que podia para manter comida na mesa, mas esta desaparecia continuamente. A certa altura, aparece com algo que fez arregalar os olhos, algo que já não víamos há uns tempitos… um queijo inteiro!
Colocou-o na mesa e disse,:
– Bom, vocês precisam de comer bem, sirvam-se de queijo!
Um dos companheiros, começou de imediato a cortar grandes fatias que distribuía a cada um, e que eram engolidos a ritmo alarmante…
A francesa, aflita, ainda disse:
– Desculpem, mas devo dizer que o meu marido ainda nem provou esse queijo! Ao que um dos nossos delicados combatentes de 1918, retorquiu, falando e fazendo gestos:
– “Madama”,… não provou, nem provará!! Ele deve ir todo agora, mas o que sobrar, vai no “bornal” !!! (bornal = saca militar de couro e lona que traziam à cintura)…

5 – O “avião abatido”
Perto da linha da frente, eu fazia o transporte de um documento que tinha de ser entregue noutro aquartelamento. Como habitual para melhor nos protegermos, o trajecto era realizado fora da estrada, e levava comigo 2 soldados.
De súbito, ouvimos o som longínquo de um avião.
Quando este ficou um pouco mais próximo, pudemos identificar o ronronar como sendo de um Fokker (alemão), que voava estranhamente baixo.
Embora estivéssemos meio-cobertos por vegetação, com demasiado receio de que tivéssemos sido avistados e nos viesse atacar, decidi tentar abatê-lo.
Pedi a um dos soldados que de pé me oferecesse as suas costas e ombro para colocar a metralhadora Lewis em posição oblíqua em relação ao solo.
(normalmente nunca era usada para estes casos, mas enfim…eu também nem tinha ainda 18 anos…)
Este assim fez, protegendo as costas, cabeça e ouvido com um capote.
Quando o avião ficou ao alcance, “enredei-o” com pequenos movimentos circulares de tiro. Quase de imediato, ouvi uns estalidos de impacto familiares, e um quanto de fumo negro começou a sair do aparelho.
O piloto reduziu nitidamente a rotação do motor, passando o barulho a ser mais abafado. O Fokker perdeu ainda mais altitude e dirigiu-se de forma directa e descendente acentuada ao lado do inimigo, desaparecendo do nosso campo visual.
Nunca conseguimos saber se de facto se despenhou, ou se só sofreu danos que lhe tenham eventualmente encurtado a viagem…

Ciclistas do Corpo Expedicionário Português. [7]

Ciclistas do Corpo Expedicionário Português em França.

6 – O “cospe-fora”
Naqueles tempos, infelizmente, poucos eram os soldados portugueses que tinham tido qualquer tipo de escolaridade, e/ou experiência de vida com carácter mais ou menos global. Dessa forma, contrastando com uma enorme bravura, capacidade de sacrifício, disciplina e generosidade, sobressaiam por vezes dificuldades cognitivas que se traduziam em reacções que embora de absoluta inocência não deixavam de ser desconcertantes:
Ao meu lado, na trincheira, vários outros soldados portugueses combatiam.
De repente, um projéctil em ricochete tem ainda força para perfurar a bochecha de um deles, encontra caminho por entre os dentes e aloja-se na garganta.
O soldado larga a espingarda, recua e começa a fazer naturais sinais de aflição, mostrando o orifício de entrada, apontando a garganta, tentando explicar o que lhe havia acontecido.
Um dos companheiros a quem ele se dirigiu, por sinal um grande amigo seu, analisa o problema e avança de imediato a solução:
– “Cospe fora” camarada !!!

7- O “barrigo”
Tal como anteriormente dito, naqueles tempos, infelizmente, poucos eram os portugueses que tinham tido qualquer tipo de escolaridade, e/ou experiência de vida com carácter mais ou menos global.
Após dias e dias de instrução de assalto à baioneta, e instrução de esgrima à baioneta com bastantes movimentos e tempos bem definidos, pergunto a um dos meus instruendos:
– Então se te encontrares com um soldado inimigo a curta distância e estás sem munições, quais são os procedimentos e movimentos que tens de adoptar?
Resposta curta e pronta:
– ” Então…. eu ‘speto o baioneto no barrigo do pessoa’ !”

8 – A “mota”
Aquando da ofensiva alemã durante a Batalha de La Lys, várias foram as ordens de movimentação e reagrupamento das nossas tropas noutros locais.
Na impossibilidade de tudo proteger, importava salvar os melhores equipamentos e/ou os mais importantes, deixando para trás e lançando fogo até, aos menos importantes ou impossíveis de transportar.
Numa dessas ocasiões, fiquei com um grupo de outros militares junto a um monte de equipamentos diversos, entre os quais 4 motas de marca “Indian” de um só lugar, e umas 10 ou 15 bicicletas.
O Capitão perguntou: – Quem sabe andar de mota?
Eu respondi afirmativamente, sendo o único.
O Capitão instruiu:
– Pegue então na que estiver em melhor estado, pegue em quanto armamento puder, dirija-se ao ponto acordado, e deite fogo às outras 3!! Antes salvar uma mota que uma bicicleta!
Peguei em munições, numa espingarda adicional e numa espada, amarrei-as à mota e arranquei.
Percorria a estrada sozinho, bem rápido, com o barulho ensurdecedor da artilharia alemã a ecoar tão próximo.
Numa curva apertada, surgiram inesperadamente vultos deitados no chão.
Impossível controlar a mota a tempo, caí e rebolei por cima e por entre esses vultos.
Reconheci-os.
Eram vários companheiros, sem vida.
Importava levantar a mota e prosseguir…


Ao meu querido Avô, com um enorme abraço de reconhecimento e de saudade,

Dezembro de 2011

Hernâni Martins


Esta foto tem mais de 90 anos e transporta-nos para um dos piores campos de batalha de então. Hoje, é bom não esquecer, há portugueses no pior campo de batalha da actualidade. [8]

Esta foto tem mais de 90 anos e transporta-nos para um dos piores campos de batalha de então. Hoje, é bom não esquecer, há portugueses no pior campo de batalha da actualidade.