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A ÚLTIMA MISSÃO DO PATRULHA  “CACINE”

Por • 31 Dez , 2019 • Categoria: 03. REPORTAGEM Print Print

Voltamos a Cacilhas aos antigos estaleiros navais da Lisnave, e fomos visitar um navio que durante 48 anos navegou ao serviço da Marinha Portuguesa, o NRP Cacine (*), agora na fase inicial de preparação para ser o próximo recife artificial da Região Autónoma da Madeira.

O antigo Patrulha “Cacine”, P1140, já tem uma última missão que evitará a sucata. O P1165 é o antigo Patrulha “Águia”.

Em Dezembro de 2014 visitamos no mesmo local o antigo NRP “General Pereira d’Eça” que estava numa fase adiantada de preparação para ser afundado, também na Região Autónoma da Madeira. Hoje já é um recife artificial muito visitado, contribuindo para o desenvolvimento do turismo subaquático, da cultura e preservação histórica, da protecção da vida marinha e da economia.

Preparar um antigo navio de guerra para esta finalidade não é tão simples como se possa julgar, é um trabalho demorado, com muito detalhe. Hoje, aproveitando esta visita ao navio como ele foi entregue pela Marinha, vamos apresentar aos nossos leitores este novo projecto nas suas linhas gerais, falando com Alberto Manuel Vítor Braz, um veterano nesta actividade.

Uma nota nossa, do Operacional, continuamos a pensar que em paralelo com esta interessante e útil actividade, o Estado Português devia providenciar recursos para preservar como Museu à superfície, visitável por todos (no mínimo) uma das nossas antigas Corvetas, com décadas de história ao serviço de Portugal e dos portugueses. É imperdoável isso não ser feito. 

Operacional: Em termos de “preparação para afundamentos” conte-nos quais os navios em que já trabalhou e onde estão neste momento?

Alberto Braz: Comecei no Projecto OCEAN REVIVAL que afundou quatro navios descomissionados da Marinha de Guerra Portuguesa. O primeiro navio foi a Corveta Oliveira e Carmo e no mesmo dia 30 de Outubro de 2012, por questões climatéricas, foi também afundado o Patrulha Zambeze.

No ano seguinte foram afundados a Fragata Hermenegildo Capelo em 15 de Junho e depois a 21 de Setembro o Navio Hidrográfico Almeida Carvalho. Todos estes navios encontram-se em frente ao Alvor, em Portimão no Algarve.

Neste projecto os responsáveis pela preparação e afundamento dos Navios eram canadianos da Canadian Artificial Reef Consulting sendo eu um dos seus assessores.

A Região Autónoma da Madeira também se lançou nestes projectos de criação de recifes artificiais e já afundou a Corveta General Pereira D`Eça na ilha do Porto Santo no dia 13 de Julho de 2016 e a Corveta Afonso Cerqueira no dia 04 de Setembro de 2018 junto do Cabo Girão. Aqui já sem a CARC o responsável coordenador já fui eu.

Operacional: E depois do Cacine já há mais alguns “na calha”?

Alberto Braz: O Governo Regional da Madeira já pediu e foram entregues por protocolo o Patrulha Cacine (que dá o nome a esta classe de navios) e a Corveta João Coutinho.

Também a Região Autónoma dos Açores está a aguardar a cedência do navio balizador Schulz  Xavier a ser afundado na ilha de Santa Maria e a Câmara Municipal de Albufeira aguarda uma corveta

Operacional: Estamos aqui no antigo Patrulha Cacine, ainda ninguém trabalhou no Navio – vê-se aliás bem, pelo que ainda há nos diversos compartimentos, de documentos e livros a bandeiras, de pratos e panelas a garrafas e a um sem número de “restos” – diga-nos como vai começar o seu trabalho? Qual é a primeira fase?

Alberto Braz: O trabalho começa pela elaboração de um caderno de encargos com vista à realização de um concurso para a execução da descontaminação, preparação e afundamento do navio.

Um dos anexos do caderno de encargos é o conjunto de folhas de detalhe de trabalho onde por cada espaço do navio se encontra descriminado qual o trabalho a executar, o que deve ser retirado, o que deve ficar, onde devem ser feitas as aberturas nos compartimentos para que a água circule possibilitando a vida marinha. Essa é a tarefa que me traz aqui hoje.

Operacional: Notámos quem tem várias “plantas” do navio, sobrepostas, como é esses documentos o ajudam?

Alberto Braz: Para facilitar a tarefa disponho do desenho do navio para poder identificar todos os compartimentos. Tal como referi anteriormente devido à compartimentação será necessário que fique após o afundamento com a possibilidade de a água circular dentro do navio para oxigenação da vida marinha que venha a existir. Por outro lado, também são feitas aberturas na parte superior de alguns compartimentos a fim de que alguma luminosidade possa penetrar. Ao sobrepor os diversos níveis do navio posso ao planear uma abertura na parte superior dum compartimento e verificar onde irá surgir não colidindo com nenhum obstáculo.

Operacional: Depois desta primeira fase o que se segue?

Alberto Braz: Após a elaboração do caderno de encargos será realizado o concurso e após este a celebração do contrato com a empresa ganhadora que a partir de aí “toma posse” do navio para executar todos os trabalhos. É nessa fase que passo a acompanhar os diferentes trabalhos para verificar que são executados conforme o caderno de encargos.

Operacional: Os trabalhos no navio em termos de remoção de detritos, limpeza, quando irão começar e quanto tempo demoram?

Alberto Braz: Neste momento não há ainda datas para início dos trabalhos, mas por norma são necessários três meses de trabalho em estaleiro para remoção do amianto que envolve algumas tubagens do navio, remoção de todos os fluidos, remoção de todas as cablagens elétricas e de comunicações, de todos os revestimentos de lã de vidro e lã de rocha, lavagem e desengorduramento dos locais onde houve óleos e combustíveis. É também nesta fase que se libertam compartimentos tendo o cuidado de deixar alguns objectos para que seja identificável qual era a finalidade desse compartimento. São deixados alguns beliches nas cobertas, é deixado o fogão na cozinha, etc.

Operacional: Depois da limpeza, estando o navio sem um único resíduo, o que se segue?

Alberto Braz: Todos os materiais retirados, sejam sólidos ou líquidos, são pesados para posteriormente serem compensados em peso de betão a colocar no fundo do navio. Com este processo pretende-se que o navio volte á sua condição normal de flutuabilidade, com a particularidade de o centro de gravidade ficar mais baixo.

O navio ao longo do processo de descontaminação é inspecionado pelo Instituto de Soldadura e Qualidade que no final atestará que o navio se encontra descontaminado.

Em paralelo também a Capitania do Porto de Lisboa acompanha a preparação do navio com vista a que esteja em condições de ser rebocado.

Operacional: Todo o trabalho até o navio estar completamente pronto para ser afundado decorrem aqui?

Alberto Braz: Os trabalhos de descontaminação decorrem em estaleiro com as condições adequadas para o efeito que não é o caso onde actualmente este se encontra e de onde será rebocado.

Operacional: No total, antes do navio se dirigir para a RAMadeira, quantas pessoas e quanto tempo prevê que estes trabalhos demorem?

Alberto Braz: O trabalho tem demorado cerca de três meses na primeira fase de descontaminação interior e ocupam vinte trabalhadores a tempo inteiro. Na segunda fase que demora cerca de uma semana, em que o navio é posto em seco, são ocupados com este trabalho de raspagem e lavagem a jacto do casco cinco homens.

Operacional: Como se procede ao deslocamento para a Madeira e que cuidados há nesta última viagem?

Alberto Braz: Após as fases de descontaminação o navio volta a ser inspecionado pela Capitania para verificar se este está em condições de fazer a travessia oceânica sendo rebocado e tendo a bordo meios para em caso de alagamento ser escoada a água. Saliento que não viaja ninguém a bordo e que a responsabilidade é da tripulação do rebocador.

Para efectuar esta travessia o navio tem de estar estanque, fechado e dividido em três partes por forma a que se uma delas for invadida pela água ele ainda continue a flutuar.

Operacional: Chegado ao local como se procede em concreto ao seu afundamento? A quantos metros de profundidade irá ficar o novo recife artificial?

Alberto Braz: Uma vez que o navio teve de viajar estanque haverá anteparas (paredes transversais do navio) que estão intactas e que serão necessárias fazer aberturas bem como as aberturas laterais no casco acima da linha de água. Também os locais onde são colocadas as cargas explosivas no interior do navio são preparados sendo raspados por forma a facilitar a aderência. Em suma há um trabalho final de preparação que pode demorar de duas a quatro semanas.

Após estes trabalhos finais o navio será uma vez mais rebocado para o local previamente escolhido e estudado sendo eu o coordenador dessa operação.

Os navios afundados até agora tem sido colocados num fundo de areia a trinta metros de profundidade. O fundo de areia é porque já é uma área onde há escassez de vida e porque ao afundar o navio será menos agressivo quando este tocar no fundo. Quanto à profundidade tem a ver com a proteção da estrutura pois não está demasiado á superfície sentindo os efeitos do mar e não está demasiado fundo que não possa ser visitado.

Até este momento, os seis navios em que participei, tem sido afundados pelo método de colocação de explosivos internamente abaixo da linha de água. Com esse processo o impacto no ambiente é diminuto e em nenhum deles foi visto nenhum animal atordoado á superfície.

No entanto há pelo menos mais um método de afundamento que é o de válvulas de fundo (que todos os navios já têm) e onde se incorporam uma ou mais para que se inunde o navio.

Operacional: É ainda a empresa onde trabalha que trata disso ou recorre a serviços especializados de terceiros, da Marinha?

Alberto Braz: A empresa que tem ganho os concursos tem recorrido à serviços especializados como os descritos anteriormente e no final conta com a presença de mergulhadores sapadores da Marinha que são os responsáveis pela colocação das cargas explosivas. Quer o explosivo quer todas as despesas da equipa da Marinha são a cargo do projecto não havendo nenhum encargo para o Estado.

Operacional: Quanto custa um projecto desta natureza?

Alberto Braz: O último projecto de afundamento da Corveta Afonso Cerqueira teve um teto de 450 mil euros para executar todas as tarefas que vão desde a preparação ao afundamento e consolidação do navio no fundo. O Governo Regional da Madeira recuperou 75% desta verba em fundos comunitários.

Operacional: Uma última pergunta, tem previsão de quando se poderá visitar o navio…mergulhando?

Alberto Braz: Não tendo ainda sido realizado o concurso é difícil prever uma data sendo certo que para a travessia e para o afundamento só deve ser realizado nos meses de verão por serem nessa altura as condições favoráveis de mar. Dentro de tantas condicionantes esta é mais uma.

(*) Desta Classe ainda se encontra ao serviço na Marinha Portuguesa o NRP Zaire, actualmente em São Tomé e Príncipe. Aqui fica mais informação sobre estes navios no Blog Barco à Vista: NAVIOS-PATRULHA DA CLASSE “CACINE”

O antigo NRP Delfim depois de várias hipóteses falhadas, segundo fontes não oficiais, talvez consiga evitar parcialmente a sucata – que foi o destino do “Albacora”; o “Barracuda” está felizmente a salvo ali ao lado em Cacilhas! – aproveitando-se a torre para fins museológicos. A “João Coutinho” deverá ser afundada, a “Baptista de Andrade” desconhecemos qual o destino que terá e o Shultz Xavier também deverá ser afundado.

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