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A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (VIII)

… Já na fase de “desfiltração” (regresso ao acampamento) depois de uma operação, caminhávamos penosamente, expostos ao ambiente árido e seco, tendo presente que em cada passo, podíamos activar um percutor de pressão de uma qualquer mina antipessoal ou tropeçar num arame de uma armadilha. O desgaste físico e mental era aterrador.

01 Guerra do Ultramar VIII [1]

Oitavo artigo desta série sobre vivências reais de um militar que combateu no antigo Ultramar Português. Quem escreve todos os artigos desta série – sobre a qual temos recebido no Operacional muitas e qualificadas palavras de elogio e apoio – apenas quer ser descrito como “um Primeiro-Cabo Pára-quedista“. Porque o conhecemos há muitos anos, respeitamos isso e aceitamos a publicação, que aliás insistimos para dar a conhecer nestas páginas do Operacional. Os factos foram passados em Angola, com militares do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 21, nos anos 70 do século XX.

Cansados, deslocávamo-nos lentamente, carregados com todo a material de guerra, sentindo o peso da mochila e o bater do cantil na anca, sabendo que estava seco.

Exaustos e com sede, arrastávamos as botas pelo chão arenoso, fracos e desidratados. Era sobre-humano.

Os que já tinham efectuado deslocamentos no Ninda (nos confins da fronteira Leste de Angola, na região de Vila Gago Coutinho, hoje Lumbala N’guimbo, não muito a norte da Jamba), sofriam mais, porque ainda não vislumbravam o enorme eucalipto do aquartelamento e sabiam que este se avistava a muitas horas de marcha.

No longo curso de combate ministrado em Tancos, cujo lema era “Instrução dura combate fácil”, os instruendos eram levados ao limite físico e psicológico, mas, em combate tudo era mais complicado, só a disciplina aceite pelos militares de elite, mantinha o grupo coeso e enquadrado.

2  Guerra do Ultramar VIII [2]

Em determinada altura, um camarada movendo-se de forma desconexa, começou a ficar para trás. Os restantes elementos da “equipa de quatro” tentaram rebocá-lo, mas o comandante de secção sem alaridos não autorizou ajuntamentos. Sabíamos que a qualquer momento podia rebentar uma emboscada e os alvos preferenciais eram os grupos, por isso nos deslocávamos com distâncias tanto maiores quanto menor era a vegetação.

A certa altura, sem dizer nada o camarada caiu no chão. Passamos palavra para a frente e fez-se um alto, com segurança para todos os lados.

O Comandante do pelotão, um educadíssimo 1ºSargento, já na terceira Comissão de combate em África, chegou junto do homem e perguntou:

– Então o que se passa camarada?

– Estou cansado e com sede, não tenho água vou morrer, não aguento mais. Dizia o militar em frases desconexas e quase imperceptíveis pela falta de humidade nas cordas vocais.

O Sargento, com a calma que a responsabilidade e experiência lhe tinham dado, dizia: – vá lá companheiro, mais um esforço. Falta pouco, o rio é já ali.

Mas o camarada desfalecido, não queria andar. Então o Sargento sacou-lhe a arma e levantando o braço fez o movimento para reiniciarmos o deslocamento.

O militar continuou deitado. Conforme passávamos pedíamos-lhe que se levantasse e fizesse mais um esforço para nos acompanhar, mas ele nada.

Começamos a ficar inquietos por deixar no mato o nosso amigo.

O lento deslocamento continuou, de repente vemos o camarada cambaleante a tentar chegar junto do comandante de pelotão para recuperar a sua arma.

Conseguimos chegar ao rio, empanturramo-nos de água e descansamos. Recuperadas as forças rumamos ao destacamento.

No quartel, depois de efectuados todos os procedimentos de segurança, alguém perguntou ao chefe porque é que não nos deixou ajudar o nosso amigo e o deixava no mato.

No momento recebemos uma lição para a vida.

Disse o 1º Sargento: – cansados e com sede estávamos todos, se o Marques conseguia falar, também podia andar..…

 3  Guerra do Ultramar VIII [3]

Nota explicativa do Operacional:

Aqui estamos longe dos considerandos de ordem política e estratégica que consomem – e ainda bem, note-se, são necessários – académicos e estudiosos, nacionais e estrangeiros, sobre a presença militar portuguesa em África. Esta é uma face da guerra, aquela que muitos viram olhos nos olhos, e que mais de 40 anos depois continua viva, por vezes demais, na sua memória.

É a guerra “com as botas no chão” na verdadeira acepção da expressão, a guerra da capacidade técnica individual muito aperfeiçoada nos mais baixos escalões da hierarquia, do espírito de sacrifício nas suas expressões mais dolorosas, da camaradagem, do heroísmo em combate, da dor dos ferimentos sofrido e causados, da sobrevivência e da morte. A dos amigos e a dos inimigos.

Não é fácil encontrar quem tenha experiência de combate real e ao mesmo tempo esteja disposto a escrever sobre os factos com esta sinceridade. Estamos agradecidos ao autor, esperamos com esta publicação dar o nosso contributo para a divulgação daquilo que foi a guerra sob o ponto de vista de quem fez.

As fotos que acompanham o texto, cedidas por amigos, ilustram situações de guerra reais das Tropas Pára-quedistas em África mas não têm outra ligação directa com estes relatos escritos.

Leia aqui o primeiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (I) [4]

Leia aqui o segundo artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (II) [5]

Leia aqui o terceiro artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (III) [6]

Leia aqui o quarto artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (IV) [7]

Leia aqui o quinto artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (V) [8]

Leia aqui o sexto artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (VI) [9]

Leia aqui o sétimo artigo de A GUERRA DO ULTRAMAR, ESCRITA POR QUEM A COMBATEU (VII) [10]