- - https://www.operacional.pt -

JOÃO PEDRO DE GÓIS FERNANDES FIGUEIRA, 1958-2014

Nunca pensei que um dia escreveria este texto, “in memorium”, lembrando um amigo de longa data, meu cunhado, mas também colaborador do Operacional e profundo conhecedor da temática militar e policial, estudioso como poucos destas áreas do conhecimento, mesmo que só os mais chegados disso soubessem.

O João Pedro Figueira com um dos muitos capacetes da sua colecção de coberturas de cabeça. aqui fotografado em Dezembro de 2007. [1]

O João Pedro Figueira, em Dezembro de 2007, com um dos muitos capacetes da sua colecção de coberturas de cabeça.

Terrível ironia do destino, seria agora aos 55 anos de idade, que o inspector-chefe da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da Polícia Judiciária e recém-licenciado em História, área que sempre adorou mas cuja formação académica sempre foi adiando, tinha começado a produzir obra escrita de fôlego para eventual publicação. Umas das suas paixões, a história da guerra no antigo Ultramar Português, sempre com opiniões politicamente incorrectas e contra a “doutrina” reinante, é um dos volumes que escreveu, além de outro sobre a Monarquia do Norte e ainda outros, mais escolares, sobre várias épocas do nosso passado comum.

Depois da História tinha continuado os estudos, agora em Direito – curso incompleto desde os anos 80 com a entrada na Policia Judiciária – e não lhe faltavam projectos para daqui a uma meia-dúzia de anos, quando chegasse à idade da reforma: da escrita à pintura – tinha uma especial aptidão para o desenho – e, quem sabe, para uma intervenção cívica activa que sempre evitou dado o seu estatuto profissional, mas que na opinião de muitos lhe assentava na perfeição. Tinha ideias, sabia falar, capacidade de argumentação e uma extraordinária memória para factos e detalhes que com facilidade ia buscar em reforço das suas teses, sendo muito difícil de contradizer.

Não sou a pessoa mais indicada para falar do seu trabalho na Polícia Judiciária mas acompanhei, falando com ele, a carreira e aquilo que fez sobretudo na área do combate à droga. Foi o sector em que mais anos trabalhou – talvez uns 30! – e em várias vertentes desde agente, na rua, até inspector-chefe, também como operacional ou como, nos últimos anos, chefe de uma brigada que tem à sua responsabilidade, além do apoio à direcção, as relações com as polícias congéneres à Judiciária que mantêm oficiais de ligação em Portugal, área que lhe dava especial prazer. Entre outras coisas porque permitia aprofundar os seus conhecimentos sobre essas organizações, as quais conhecia como poucos até aos mais ínfimos detalhes – adorava saber, memorizava com incrível facilidade questões ligadas à organização, métodos, equipamentos, fardamentos, insígnias, carreiras – e era também com inegável satisfação que desmontava muitas ideias feitas e propaladas em Portugal sobre forças policiais estrangeiras. É dos poucos assuntos sobre os quais chegou a escrever, quer na revista “Modus Operandi [2]” da Associação Sindical da Policia Judiciária, quer por uma vez no “Operacional”, O MODELO PORTUGUÊS DE POLÍCIA [3], onde apontava claramente os erros de análise que muitas vezes são feitos ao nosso modelo de polícia, conscientemente e com objectivos meramente corporativos. O conhecimento e aptidão para as relações internacionais levaram-no a várias missões no estrangeiro, quase e sempre de curta duração mas a fóruns onde a informação sobre tráfico de droga é partilhada e foi durante 6 meses o representante português num departamento multinacional ligado à partilha de informação, criado em Toulon no Sul de França.

Foi um dos formadores iniciais da Policia Judiciária de Cabo Verde – ainda no ano passado, casualmente, contactei em S. Vicente um dos fundadores cabo-verdianos desta polícia que não só lembrava perfeitamente com muita saudade as suas aulas, como lhe teceu os maiores elogios profissionais, desconhecendo a nossa ligação familiar. Durante anos – mantendo as suas funções no departamento de combate à droga – deu aulas na Escola da Polícia Judiciária, sendo o ensino e o contacto com os mais novos, os que estavam a chegar à sua instituição, uma tarefa que desempenhava com gosto e para a qual tinha muita aptidão. Gostava de assumir o papel do “veterano” que ajuda e apoia os mais novos e aos quais relembra as regras da casa, o passado da Polícia Judiciária. No seu departamento era mesmo responsável pela história e cabia-lhe representar “a Droga” – modo como se referia ao departamento de combate à droga, entenda-se! – na preparação do Museu da Polícia Judiciária. O seu gosto e aptidão para o desenho, o conhecimento do passado, e também uma grande atenção às questões ligadas à Heráldica, levaram-no mesmo a conceber e desenhar uma nova heráldica para a Escola, a qual foi aprovada superiormente. Como representante do combate à droga tinha também a seu cargo a realização de palestras de sensibilização em diversas entidades exteriores à PJ, nomeadamente em unidades das Forças Armadas.

Passou pela Interpol algum tempo, com opiniões nem sempre coincidentes com a hierarquia, tendo-me ficado a impressão que não foi das coisas que mais gostou de fazer, mesmo que a componente internacional das tarefas lhe tenha proporcionado missões interessantes em vários países do mundo.

Para o grande público foi durante alguns anos o rosto visível do combate à droga, uma vez que desempenhou funções na área das relações públicas do departamento – o que lhe agradava, diga-se – tendo intervenções nas televisões, fosse para difundir novas apreensões fosse para participar em debates/entrevistas sobre esta temática. Esta função permitia ainda um contacto estreito com as Forças de Segurança e as Forças Armadas, quando estas participam nas operações da PJ, facto que fazia com inegável prazer e sempre aproveitava para aumentar os seus conhecimentos. Era-lhe quase instintivo quando contactava com um militar ou um polícia, questionar amigavelmente sobre o que tinha sido a sua vida militar, onde tinha servido (sobretudo se era gente do tempo da guerra em África), colecionando na sua memória inúmeras destas histórias pessoais.

O João Pedro Figueira por questões de saúde não cumpriu o serviço militar quando ele era obrigatório. Ao contrário de muitos, nos finais dos anos 70, queria passar por esta experiência mas a asma (ou doença semelhante não recordo bem), levou o médico que lhe fez a inspecção a “livrá-lo”. Argumentou que queria ser militar, mas, com contingentes em excesso, o clinico não voltou atrás. Assim, com os estudos universitário “a meio” (Direito na Católica), decide-se por concorrer à Polícia Judiciária e segue a carreira desde “soldado”, desinteressando-se da formação académica. Seguiu o que quis, que lhe dava gozo naquela fase da vida, “passando ao lado” de outra vida que poderia sem qualquer problema abraçar na advocacia ou na política, área em que quando adolescente muito o interessou, tendo mesmo sido militante da Juventude Centrista. A entrada na PJ naturalmente afastou-o da política e as passagens do CDS/PP pelo governo nos anos do seu último dirigente afastaram-no da linha seguida pelo partido, mantendo-se fiel às suas ideias conservadoras e monárquicas.

Tinha algumas coisas que lhe agradavam especialmente, permitindo-me referir duas apenas porque se centram em temáticas que nós aqui no Operacional tratamos. Era um “fã” quase incondicional da Guarda Nacional Republicana. Não deixando de apontar erros e desvios àquilo que no seu entender esta importante força de segurança deve ser, adorava a Guarda e era, por exemplo, assistente crónico das cerimónias do Render da Guarda no Palácio de Belém, onde não poucas vezes o acompanhavam outros nossos colaboradores e amigos como João Brandão Ferreira e Carlos Gervásio Branco. Chegou mesmo a desenhar e propor um novo regulamento de uniformes para a GNR, o qual não tendo sido aceite é verdade, acabou por influenciar alguns artigos de uniformes actuais. Aliás, esse estudo que elaborou em conjunto com o então Capitão INF GNR Carlos Gervásio Branco e o capitão CAV GNR Costa Cabral, foi em parte publicado na revista “Pela Lei e Pela Grei” da GNR e lá se vêem, por exemplo, os uniformes de cor castanho claro…20 anos antes de terem sido adoptados pelo GIPS. Conhecia bem a Guarda e tinha lá muito amigos.

Outra das suas preferências, o Reino Unido e as Forças Armadas de Sua Majestade! Sendo também um profundo conhecedor e admirador quer das Forças de Segurança quer das Forças Armadas de Espanha e de França, a preferência era sem dúvida tudo o que se relacionasse com os nossos mais antigos aliados. Impressionava o detalhe de saber que tinha sobre tudo, ou quase, que às policias e aos militares britânicos dissesse respeito. Dos uniformes à organização, da legislação às tradições. Chegou até a assistir em Londres – por convite de um dos oficiais de ligação britânicos em Portugal – à cerimónia oficial do aniversário da Rainha, o célebre “Troupping the Colour”. Muitos exemplos podia aqui escrever desta sua particularidade, das questões de serviço em que colaborou com os britânicos em Gibraltar, até à fantástica colecção de soldadinhos de chumbo representando unidades britânicas.

Em escassos meses um cancro pôs fim ao muito que o João Pedro de Góis Fernandes Figueira ainda podia fazer não só pela Policia Judiciária, que serviu mais de 30 anos e a qual, apesar de problemas conjunturais que por vezes o desmotivavam, sempre acabava defendendo, como naquilo que cada vez lhe dava mais prazer, estudar os temas da sua predileção.

É uma perda muito dolorosa a sua partida!

Nasceu a 8 de Junho de 1958, faleceu a 29 de Maio de 2014

Miguel Silva Machado

Sobre o Inspector-Chefe João Pedro Figueira, leia também:

De João Brandão Ferreira: PALAVRAS EM JEITO DE SENTIDA DESPEDIDA [4]

De Carlos Gervásio Branco: UMA HOMENAGEM [5]