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GUERRA EM MOÇAMBIQUE: 1916 – TESTEMUNHOS

Quando passam 95 anos sobre estes factos que tiveram lugar na então colónia portuguesa de Moçambique, trazemos aqui pela investigação de Manuel Ribeiro Rodrigues mais testemunhos dessa época esquecida. Talvez se perceba porquê ao lermos as desassombradas palavras (em larga medida actuais!) do General Gomes da Costa, que abaixo transcrevemos em vários parágrafos.

MOÇAMBIQUE – TESTEMUNHOS

Passando o Rovuma (colecção particular) [1]

Passando o Rovuma (colecção particular)


8 DE NOVEMBRO DE 1916: DE NEVALA PARA LULINDI

(…) Falava-se com insistência nos famosos reforços que a Metrópole enviaria, mas os soldados sentiam-se cheios de desenganos, abatidos por tantas e tão desoladas amarguras, deixando-se abater, andrajosos, ampaludados, rotos de espírito e vestuário, acreditavam, com uma serenidade búdica de dever cumprido, que já não tinham alma para mais! (…)

Norte de Moçambique e colónias adjacentes [2]

Norte de Moçambique e colónias adjacentes

(…) Ao Quartel-general competia estar em Palma, a cento e tantos quilómetros, onde nem um berro de canhão chegava. Em compensação trabalham de gabinete como mouros, expedindo ordens:
– Avance!
– Mas não temos víveres…
– Avance!
– Mas não temos água…
– Avance!
E cá vamos seguindo junto ao rio, como uma lesma
(…)

Sobre o Rovuma (colecção particular)

Sobre o Rovuma (colecção particular)

(…) E numa tarde de sonho Deus chegou! Era o Major de Artilharia, Leopoldo da Silva, visionário incorrigível, na sua luminosa coragem, na ode magnífica da sua insensatez marcial (…)

Major Leopoldo da Silva (colecção particular) [3]

Major Leopoldo da Silva (colecção particular)

(…) Vinha ébrio de sonho. Que iria suceder? O Major com o seu aspecto viril e inquieto, com o seu séquito de artilheiros todos rútilos e altivos nas fardas vistosas, metia medo e deslumbrava! Leopoldo da Silva trazia, de Palma, as suas credenciais de novo chefe da COLUNA DE MASASSI, arrebanhou homens, exaltou esperanças e redigiu a “Ordem de Marcha” e, no dia imediato a Coluna, meia estremunhada, meio louca, abandona a esplanada de Nevala marchando para Lulindi (…)

Tropas portuguesas em Moçambique (colecção particular) [4]

Tropas portuguesas em Moçambique (colecção particular)

(…) À frente, Leopoldo da Silva e a sua hoste de artilheiros, cavalgando com firmeza, seguindo-o, um grupo de militares sem vontade, sem fé, projectando na fria luz da madrugada a sua mancha bizarra de miséria: clarões de carne ao léu, farrapos de vestuários, alguns meios nus, outros em mangas de camisa (…)

(colecção particular) [5]

(colecção particular)

(…) Com o sol ardente, às portas de Lulindi a artilharia toma posições, regula o tiro e abre fogo nutrido. As “sharpnell” sibilam em chicotadas de aço, batendo o ar mas sem resposta do inimigo (…)

Artilharia portuguesa (colecção particular) [6]

Artilharia portuguesa (colecção particular)

(…) Retoma-se a marcha e, com a coluna entupida na apertada barragem do caminho, num belo alvo, a emboscada alemã replica então com ferocidade varando a cavalaria de exploração numa fuzilaria brava (…)

A emboscada alemã (Colecção particular) [7]

A emboscada alemã (Colecção particular)

(…) Há um embaraço e pânico, tumultos, esboçam-se fugas. A estreita estrada regurgita de trens municiadores e carros de víveres, dificultando as posições. Mas a infantaria negra estende e abre em duas secções; a primeira comandada pelo valente Tenente Saraiva, da 22.ª Indígena, ocupa o flanco esquerdo; a segunda, postada no flanco direito às ordens de outro bravo militar, o Sargento Matos do 28 (…)

(Colecção particular) [8]

(Colecção particular)

(…) O fogo rompe, primeiro fraquejante, depois intrépido e quente. Mas o inimigo encrespa-se com ousadia, assume superioridade, varre as frentes com rajadas continuas (…) Entretanto para desgraça das armas portuguesas, a nossa artilharia muito perto de nós, não podia fazer fogo, e as metralhadoras muito a custo eram arrastadas para a linha de combate. A guarnição dessas armas era deficientíssima: as peças tinham um clarim, um 2.º cabo, dois sargentos e um oficial; as metralhadoras apenas nove soldados de infantaria, apanhados à unha, conhecendo esta arma só de longe (…)

Artilharia alemã (Colecção particular) [9]

Artilharia alemã (Colecção particular)

(…) E já nas metralhadoras faltam as munições; já os carregadores fogem apavorados com esta luta de tigres enfurecidos, e é então que o Major Leopoldo da Silva vendo, num relâmpago, a queda inevitável do seu vasto sonho de águia napoleónica, corre, numa humildade de soldado que não trepida, e acode com pólvora, com um cunhete inteiro, à metralhadora prestes a calar-se…mas duas balas sibilam com alegria macabra, criminosas, ímpias, e o Deus tomba, ferido de morte! (…)

Metralhadora portuguesa (colecção particular) [10]

Metralhadora portuguesa (colecção particular)

(…) A raiva da dor e a previsão duma derrota morde como áspides a coragem destes leões, perturbando o campo. E um incêndio de loucura varre as fileiras, cresta as almas (…) um sargento do 28, neste desvairamento da refrega, prende o Alferes Craveiro Lopes tomando-o por “boche”, o Tenente Germeniano Saraiva, varejado pelas nossas metralhadoras, intima-as a calarem-se ou a mudarem de direcção, sob o perigo de mandar os seus homens fazer fogo contra elas, ninguém se entende (…)

Capitão Pedro Curado (colecção particular)

Capitão Pedro Curado (colecção particular)

(…) Entretanto, levado para a retaguarda com o Ajudante – o Alferes Monteiro Leite, também ferido quando o socorria – o Major Leopoldo da Silva, rouco, esvaído de sangue, clamava que “retirassem” e salvassem os seus soldados…- grande ainda, Senhor, no seu imenso coração vencido! (…) os ânimos dobram-se, há um fraquejo nos graduados. Seria melhor retirar…alguém alvitra com timidez (…) ergue-se então o maior Homem de toda esta Epopeia decadente: é o Capitão Pedro Curado! Pistola no cinturão, cavalo-marinho e cachimbo à “rifle”, dissimulada despretensiosamente sob o chapeirão bóer (…) e sem perder um momento é ele que assume o comando. Então de novo o campo se electriza. À falta de água, esgotadas já as últimas garrafas de Cúria e Vidago, urinar-se à pressa no “refrigerador” das metralhadoras. Depois, sempre de pé, arrastando todo o arraial, o chefe precipita a sua companhia negra numa avalanche sobre o “boche”, a qual, valente como nunca, ébria da pólvora e lisonjeada pela grandeza do comandante, rompe em pavorosa gritaria e faz uma “carga” ululante e épica. Foi o fim. O inimigo fraquejou, quebrou e sob o último tiro das nossas granadas, calou-se de todo, retirando em desordem, desmantelado, sem orgulho e sem forças, para a baixa charneca de Lulindi. Anoitecia (…)

Posto de observação (colecção particular)

Posto de observação (colecção particular)

(…) Com a retirada de Leopoldo da Silva o comando do combate pertencia ao Capitão Baptista, das metralhadoras como, oficial mais antigo. Porém alegando não sei que “pessoalíssimas razões” este, oficial, recusou-se terminantemente a esta missão. E como comentário é conhecido este grito galhardo do Capitão Curado, que berrou para um emissário, no fim do combate: “DIGA LÁ AO SR. CAPITÃO BAPTISTA QUE VENHA TOMAR O COMANDO DISTO, QUE JÁ NÃO HÁ TIROS” (…)

(…) Louco? Visionário? Leopoldo da Silva ficou no meu coração, que meu pai ensinou a ser grande, como símbolo do esforço heróico, castiço, da velha cavalaria Lusa – por isso merecendo o meu amor e a minha admiração, poucas vezes dispensada aos homens. Que ele fosse um louco, sim! Mas todos nós preferiríamos morrer heroicamente com este Louco, numa luta briosa e enérgica, com sangue e sol, a acabarmos vergonhosamente como o aristocrático senhor de Palma, apodrecendo nas lamas da Base.

(…) Glória ao Herói de Quivambo! (…)

António da Cértima in: “Epopeia Maldita


MOÇAMBIQUE E “A EPOPEIA MALDITA

AFIRMAÇÕES DO GENERAL GOMES DA COSTA ACERCA DO LIVRO “EPOPEIA MALDITA”de ANTÓNIO DA CÉRTIMA

(…) Dizia Stendhal, que a arte de mentir se aperfeiçoara muito no seu tempo; que diria ele se hoje aparecesse nesta nossa boa terra de Portugal? Porque, mentir, passou a ser uma necessidade entre nós, desde que se criaram as clientelas para apoio de um chefe que lhes dê de comer. A mentira adopta, agora, formas vagas, genéricas, vesgas, imprecisas, difíceis de incriminar e, sobretudo, de refutar (…)

Gomes da Costa em França (colecção particular) [11]

General Gomes da Costa em França (colecção particular)

(…) Todos fingem pretender que só se diga a verdade, mas quando alguém de coragem a revela, todos lhe saltam em cima, injuriando-o, abafando-o, repelindo-o. Numa Nação de iletrados, onde a opinião pública é representada por dois ou três jornais politicos, a Verdade anda escondida pelos cantos, e só muito tarde se resolve aparecer (…)

(…) Quando algum fracasso ocorre, não hesitam em atirar com as culpas para cima dos outros; e é este o caso da guerra, e particularmente da guerra de África, em que se procuram atribuir culpas do tremendo desastre aos pobres dos soldados e aos graduados inferiores. Cheia de verdade é “A EPOPEIA MALDITA”, e por isso mesmo tem esse livro raro valor. A miséria que descreve, escritor algum seria capaz de as inventar (…)

(…) O que se passa em África foi o mesmo que se passou em França, apenas com a diferença de nesta se não sentirem privações – graças à administração britânica; porque se estivessemos entregues a nós mesmos, a catástrofe teria sido horrorosa (…)

Atravessar o Rovuma (colecção particular) [12]

Atravessar o Rovuma (colecção particular)

(…) Em África, vemos os chefes e a sua claque, na base, comendo, bebendo, passeando, gozando, estendidos nas preguiceiras de verga, abanados pelos moleques, tomando limonadas ou “whisky and soda” bem gelados; o resto, a canalha, os párias – rotos e sujos, debaixo dum sol de inferno, sem pão, sem água, sem medicamentos, atolados nos lodos do Rovuma, trocando tiros com o inimigo pela honra de uma Pátria cujos destinos estavam nas mãos de inconscientes, ou ignorantes, ou perversos (…)

(…) Mas no fim, ao terminar a guerra, aparecem, numa evidência balofa, os videirinhos, assaltando os lugares de rendimento, reforçando as clientelas dos deuses de ocasião, cobrindo-se uns aos outros de condecorações e afastando os que poderiam incomodá-los, caluniá-los,e, entre estes, até os pobres mutilados, que eles só aproveitam para os explorar em exibições públicas, colocando-os à sua frente (…)


(…) O livro “A EPOPEIA MALDITA” é a reacção salutar contra a mentira de África, é um livro de coragem absoluta, é um livro de Verdade! Porque, os que, como eu, viram em Mocímboa da Praia, ao terminar a guerra, as montanhas de pneus, os centos de automóveis, os rios de águas minerais e de vinho, as máquinas de toda a espécie, algumas das quais nem tinham quem delas se soubessem servir; os refrigeradores, as toneladas de víveres que, estragados pelo tempo, tiveram de ser atirados ao mar, indo envenenar o peixe da baía; as cruzes de pau dos cemitérios, abandonados, dos nossos soldados; quem viu tudo isto, é que pode compreender bem o que é “A EPOPEIA MALDITA”, e revoltar-se contra a inépcia, incapacidade, incúria, desleixo, estupidez e desumanidade dos que, com os meios de acção mais poderosos que nenhuma outra expedição portuguesa teve em África, deixaram devastar e destroçar à fome e à sede, esses pobres soldados de Portugal! (…)

Artilharia de montanha portuguesa (colecção particular) [13]

Artilharia de montanha portuguesa (colecção particular)

(…) Mentira! Tudo Mentira! Ninguém quer a Verdade, porque a Verdade, como a luz, ofusca essas aves sinistras que se governam a si, fingindo governar a Nação. Políticos da força dos básicos de Mocimboa da Praia, comendo e bebendo em repetidos banquetes, sem que lhes perturbe as digestões a lembrança dos que a esta hora dormem nos cemitérios de França e de África, vítimas da sua incapacidade e da eterna falta de preparação do exército (…)

(…) Mentira só possível num País onde o Povo, bestializado por uma secular vida de submissão, consente que o crucifiquem sem soltar, sequer um grito. É esta a lição que se tira da leitura deste livro soberbo de Verdade, escrito por quem viu e sentiu bem a guerra em todo o seu horror!(…)

Gomes da Costa, General


Coordenação do texto Manuel Ribeiro Rodrigues / Blog Grande Guerra 1914 A 1918 [14]