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DA GUERRA À PAZ, A GNR NO IRAQUE

O Operacional hoje volta ao tema da participação da Guarda Nacional Republicana na guerra do Iraque, pela experiência de quem conheceu esse conflito com “as botas no chão”. Pedro Miguel Duarte da Graça, Major da GNR, foi em 2004 Comandante de Pelotão Operacional da Multinacional Specialized Unit na Força Multinacional de Estabilização do Iraque, e director do 1º Curso de Manutenção de Ordem Pública em Angola (2006). Na GNR desempenhou funções de carácter operacional no Regimento de Infantaria e outras ligadas à instrução quer na Academia Militar quer no Centro de Formação da GNR na Figueira da Foz.

Cumprem agora 10 anos que a Guarda Nacional Republicana regressou do teatro de operações do Iraque. foi a primeira unidade portuguesa condecorada com Medalha de Ouro de Serviços Distintos com Palma, por ação em missões de apoio à paz. [1]

Cumprem-se agora 10 anos que a Guarda Nacional Republicana regressou do teatro de operações do Iraque. Foi a primeira (e única até agora) unidade portuguesa condecorada com Medalha de Ouro de Serviços Distintos com Palma, por ação em missões de apoio à paz.

Pedro Miguel Duarte da Graça, 41 anos de idade, tem também carreira académica sendo Mestre em Estudos da Paz e da Guerra nas Novas Relações Internacionais (Universidade Autónoma de Lisboa), Pós-Graduado em Direito e Segurança e Auditor em Segurança, em Ciências Militares e Policiais e em Criminologia. Desempenhou ainda funções no dispositivo territorial da Guarda, em Tomar e Santarém, quer em aspectos ligados à protecção da natureza, investigação criminal, operações e informações, quer em áreas como o treino ou as relações públicas. Actualmente está colocado em Lisboa, no Comando da Administração dos Recursos Internos, e esta primeira colaboração com o Operacional, que muito agradecemos, é um trabalho de carácter científico que foi previamente publicado em JANUS.NET, e-journal of International Relations ISSN: 1647-7251 Vol. 5, n.º 2 (novembro 2014-abril 2015), pp. 78-98.

DA GUERRA À PAZ:

O CONTRIBUTO DOS CORPOS MILITARES COM FUNÇÕES DE POLÍCIA.

A GNR NO IRAQUE

INTRODUÇÃO

Em 2003, no advento da guerra do Iraque, Portugal marcou uma posição política no futuro do conflito, secundada pela disponibilidade de Forças constituídas para a Operation Iraqi Freedom. A coligação militar foi constituída ad-hoc, fora da OTAN, mas baseada na sua doutrina.

Neste quadro de ação da política externa portuguesa, a escolha de uma Força constituída recaiu na Guarda Nacional Republicana (GNR).

Muito se escreveu e mais se disse relativamente ao envio deste Corpo Militar para o Iraque, supostamente em detrimento das Forças Armadas (FFAA). O racional presente nesta argumentação não pode ser o institucional, a lógica de análise deve ser outra, a funcional, numa visão de comprehensive approach (NATO, 2010b: 2-11), orientada para o statebuilding, e de criação de um jus post bellum que os conflitos modernos requerem, salvaguardando a atuação em ambiente instável (Kaldor, 2006: 6).

Passados 10 anos da participação da GNR no conflito iraquiano, o apresente artigo reveste-se de singular relevância científica porque vai para além da instituição, vai ao encontro do que é a Função de Polícia em ambiente instável e o seu contributo para a prossecução da política externa portuguesa (Guedes A. M. & Elias L., 2010).

I. ESTUDOS PARA A PAZ

O norueguês Johan Galtung, considerado o criador dos Estudos para a Paz, em meados do século XX adotou conceptualmente uma visão dual da Paz, a paz negativa «(…) absence of war (…)» e a Paz positiva «(…) integration of human society (…)» (1964: 2). O objeto dos Estudos para a Paz é a violência/ não-violência, indo além dos estudos da guerra (Galtung, 1969: 168-174; Boulding, 1990: 4-5).

Posteriormente, o autor enuncia como modelo idealizado o que apelida de triângulo da violência, fazendo coincidir com o mesmo o triângulo da Paz. A cada vértice faz coincidir um tipo de violência: direta, estrutural (1969) e cultural (1990), a que contrapõe um tipo de paz. A violência direta (pessoal), enquanto ato de agressão intencional; a violência estrutural (indireta), como reflexo da estrutura social; a violência cultural (simbólica), constituindo-se como sustentáculo de legitimação da violência direta e a estrutural (Galtung, 1996: 2).

Ilustração 1- Triângulo da Paz (Galtung, 1990) – adaptado [2]

Ilustração 1- Triângulo da Paz (Galtung, 1990) – adaptado

Os Estudos para a Paz, enquanto disciplina socialmente produtiva, garantiram os pressupostos teóricos para que a ONU elaborasse quanto à questão um quadro prático com ela consentâneo. Este foi firmado através de «An Agenda for Peace. Preventive diplomacy, peacemaking and peace-keeping» (UN, 1992), abarcando os conceitos de peacebuilding e peace enforcement, indo ao encontro da teoria de Galtung, «Three Approaches to Peace: Peacekeeping, Peacemaking, and Peacebuilding» (Galtung, 1975).

Kofi Annan realizou uma abordagem da segurança que entronca nos conceitos de Galtung, ao deixar de centrar a mesma no Estado, passando a integrar o indivíduo, a designada segurança humana (UN, 2000).

Galtung afirma que num conflito

«[m]ilitary training is indispensable: to contain violence. Knowledge of the means of violence and the mentality behind their use is needed. But, for ‘crowd control’ police training may be better, more based on a show of authority and minimum use of violence (…) come active nonviolence training, also training to train the local population, and training in conflict mediation techniques (…)» (Galtung, 1996: 270).

O autor identifica como sendo essencial o treino militar para lidar com a violência, podendo ser melhor para a manutenção da ordem pública o treino policial.

O conceito de Paz positiva de Galtung foi acolhido pela ONU. Perante a necessidade de alcançar a segurança, para garantir a Paz, releva saber: quais a ameaças atuais, de que forma as operações de imposição da paz constituem resposta para atuar em Ambiente Instável e como estas são enquadradas e executadas pela OTAN (ou eram, à época).

II. IMPOSIÇÃO DA PAZ – O AMBIENTE INSTÁVEL

1. As ameaças à segurança

O surgimento das “novas guerras” (Kaldor 2006), mais que a originalidade das mesmas, identificam o risco associado ao declínio do Estado, com base em ameaças latentes durante a Guerra Fria, que o fim da mesma veio confirmar (Rasmussen, 1999: 43).

Atualmente, a ONU define a ameaça (UN, 2004: 12) e identifica uma forte preocupação com seis tipos desta:

(i) a guerra entre Estados;

(ii) a violência no interior dos Estados (guerras civis, violações maciças dos direitos humanos, genocídio, etc.);

(iii) ameaças económicas e sociais, como a pobreza, as doenças infetocontagiosas e a degradação do ambiente;

(iv) as armas nucleares, radiológicas, químicas e biológicas;

(v) o terrorismo;

(vi) o crime transnacional organizado (Idem: 32).

Estas “novas ameaças”, sendo uma mistura de «(…) war, crime and human rights violations (…)» (Idem: 12), requerem uma abordagem entre a missão do soldado e do polícia, num contexto em que «[o] exército e a polícia parecem estar a mudar de papel (…)» (L’Heuillet, 2004: 199).

O ambiente instável e imprevisível, o crescente número de riscos transnacionais e consequentes desafios parecem justificar a emergência de uma terceira Força. Esta tem capacidade de atuar na segurança interna estatal, estando simultaneamente preparada para fazer face às ameaças que sendo externas influam internamente, como sejam o crime organizado transnacional, o tráfico de droga ou o terrorismo (Lutterbeck, 2004). Estas Forças, são, no essencial, um produto dos séculos XIX e XX, resultantes das lutas entre as ordens internas Westphalianas e dos internacionalismos então crescentes, assumindo como principal objetivo a manutenção da lei e da ordem ao nível interno, tendo ainda a capacidade de atuar em conflitos externos – as Gendarmeries. Descendentes da Gendarmerie francesa, estas Forças, organizadas numa linha militar, com Funções de Polícia, têm demonstrado ser um excelente instrumento para uma intervenção eficaz no pós-conflito.

Conforme Richard H. Solomon identifica, nomeadamente no conflito Iraquiano, existe um problema,

«(…) military peacekeepers are able to stop conflict by separating combatants or by ousting hostile, repressive regimes; however, they are not trained or equipped to restore self-sustaining order and stability to a society in a post conflict environment.» (Perito, 2004: ix).

O princípio base é que não basta conquistar a ordem, tarefa a cargo das FFAA. É necessário ter capacidade de manter a mesma, respeitando a liberdade cívica, o que exige uma abordagem holística, mais abrangente e integrada que a alcançada pela resposta exclusivamente militar. É no pós-conflito que emergem as Gendarmeries, titulares de uma aptidão única de recorrer à força mínima em situações de máxima violência (Zimmermann, 2005), garantindo a ordem pública através da aplicação da lei.

Os Corpos Militares com Funções de Polícia «(…) can serve as a bridge between the military and civil police and can handle tasks that do not clearly fall within either camp.» (Perito, 2004: 5). Este elo, de cariz institucional e funcional, pode e deve ser mantido nas diferentes fazes do conflito, numa conjuntura em que o mundo ocidental necessita de uma nova abordagem relativamente ao tipo de Forças a utilizar em operações de pós-conflito (Field & Perito, 2002-03).

2. Imposição da Paz, Ambiente Instável – uma aproximação

O ordenamento jurídico nacional, através da Portaria 87/99, de 30 de dezembro de 1998, define os países cuja classificação permite identificar o tipo de ambiente operacional. Esta classificação é gradativa de “A” a “C”, em que a última tem o ambiente operacional mais complexo, mais instável. As operações de imposição de paz enquadram-se na classe “C”.

«Os países ou territórios em situação de guerra, conflito armado interno ou insegurança generalizada e ainda aqueles em que se verifiquem graves condições de salubridade.» (1) (2)

Nas Operações para a Paz, nomeadamente as de Imposição da Paz, as Forças têm deparado com aquilo que a doutrina tem apelidado de Security Gap.

III. SECURITY GAP

Os atuais conflitos requerem cada vez mais uma abordagem, que entre outros, integre o instrumento militar e o policial, «(…) between soldiering and policing.» (Kaldor, 2006: 133). As operações para a paz são o mecanismo utilizado pela comunidade internacional, que nos últimos anos «(…) have increasingly required the participation of both military personnel and civilian police.» (Oakley, Dziedzic, Goldberg, 1998: 6).

O autor remete-nos para o conceito de Security Gap, enquanto ausência de capacidade para exercer a mais básica das funções do Estado, proteger os seus cidadãos. A Força multinacional, que tenha a responsabilidade de restaurar a ordem e a lei com justiça, depara-se objetivamente com três Security Gaps: Deployment Gap, Enforcement Gap e Institutional Gap (Idem: 8-16).

Para promover a Paz é necessário garantir a ordem, a lei e a justiça. A (i) ordem atua ao nível violência direta, de agressão física, verbal ou psicológica, afastando os efeitos rápidos e dramáticos; (ii) a lei e a justiça ao nível da violência estrutural (indireta), auxiliando na consolidação de uma estrutura social justa, esbatendo a assimetria entre o real e o potencial; (iii) atuando também ao nível da violência cultural, promovendo valores, normas e comportamentos que não legitimem socialmente a violência estrutural e a violência direta.

Para restabelecer a ordem é necessária uma Força Internacional com capacidade Militar. Subsequentemente, com a ordem deve passar a coabitar a lei, sendo essencial uma Força com capacidade de Funções de Polícia. O lapso de tempo entre as duas capacidades denomina-se deployment gap, devendo ser diminuído, se possível pela integração das Forças.

Ilustração 2- Conceptual Framework - Adaptado Fonte – (Oakley, Dziedzic, Goldberg, 1998: 5). [3]

Ilustração 2- Conceptual Framework – Adaptado
Fonte – (Oakley, Dziedzic, Goldberg, 1998: 5).

Na fase seguinte, é necessário cumprir funções que não são desempenhadas nem pelo instrumento militar puro, nem pelo instrumento policial puro, é imprescindível garantir a continuidade funcional e institucional em ambiente instável, superando o Enforcement Gap.

Na terceira fase é necessário reconstruir as estruturas locais. Para tal, devem ser empenhadas em cada área, as instituições que sejam especialistas na mesma, que seja o seu core business. Para tal, é necessário preencher a institutional gap, recorrendo a Forças que pelas missões que cumprem diariamente nos países de origem tenham uma comprehensive approach, criando as condições de desenvolvimento para uma Paz sustentável em segurança.

Estas Security Gaps apelam a Forças com capacidade de Corpo Militar e de Funções de Polícia, podendo: ser projetadas com o instrumento militar, desempenhar Funções de Polícia mesmo em ambiente instável, laborar no terreno em permanente ligação ao sistema legal na promoção e construção do sistema de segurança. Estes Corpos Militares com Funções de Polícia são conhecidos como: Gendarmerie, Carabinieri, Guardia ou Constabulary. (Jayamaha et al., 2010: 148; Oakley, Dziedzic, Goldberg, 1998: 519-520, 330; Perito, 2004: 5).

As Secutity Gaps podem ainda apelar para funções de Polícia pura e simples, embora com menor eficácia nos casos mais polarizados (Elias, 2006).

Tanto num como noutro, aquilo que está em causa é o statebuilding amparado por um jus post bellum emergente (Guedes, 2011).

IV. CORPOS MILITARES COM FUNÇÃO DE POLÍCIA

A origem destas instituições remonta ao século XIV francês, aquando da Guerra dos Cem Anos, as Marechaussees. Estas tropas dos marechais tinham uma dupla função, judiciária e de manter o equilíbrio interno. Funções próximas do que, hoje, apelaríamos de jurídico-policiais.

Posteriormente, estas tropas adquiriam um verdadeiro estatuto militar e uma nova designação – Gendarmerie. Este modelo deu origem a instituições semelhantes em vários países, como a Guarda Real de Polícia em Portugal, os Carabinieri no Reino da Sardenha, a Marechaussee na Holanda e a Guardia Civil em Espanha. Como características comuns, identificamos a natureza militar e as funções policiais,em ambos os casos avant la lettre.

Os países anglo-saxónicos, tantas vezes citados, apresentam uma designação diferente: Constabulary (3). Conforme o americano Robert Perito refere,

«[t]he ambiguous and conflicting definitions of a constabulary can be clarified by looking at the specific organizations and functions of constabulary forces in democratic countries [, like] France, Italy, the Netherlands, Spain (…) (Perito, 2004: 37).

Estas definições afastam termos como: paramilitar, militarizado ou polícia militar, esta última enquanto polícia responsável pela disciplina das FFAA (Scobell & Hammitt, 1998).

1. Militar

A identificação de “Corpo Militar” é realizada enquanto grupo de militares organizados, com uma cultura institucional própria e subordinado ao poder político, tendo por base três elementos: deveres, pela abordagem estatutária; condicionalismos, no que concerne à restrição de direitos; deontologia, através dos valores.

2. Função de Polícia

A doutrina tende a agrupar as Funções de Polícia em judiciária e administrativa. Esta última é subdividida em polícia administrativa “geral” e “especial” (Correia, 1994: 407).

A função judiciária tem como principal finalidade a repressão e como objeto os ilícitos criminais. Para exercer à investigação dos ilícitos criminais é essencial ter a qualidade de órgão de polícia criminal (OPC), dependendo os mesmos funcionalmente da Autoridade Judiciária.

À polícia geral cabe a prevenção de perigos à ordem e segurança pública. Enquanto a polícia especial exerce as suas competências relativamente a um determinado ramo do direito. (Castro, 2003: 97)

A Guarda Nacional Republicana, no conjunto das suas capacidades, enquanto Corpo Militar no desempenho de todas as Funções de Polícia, detêm

«(…) uma capacidade de adaptação a diversificados cenários e a diferentes situações. Em suma, possuem uma versatilidade e polivalência incomparavelmente superior, quer à das Forças Armadas em sentido clássico, quer à das polícias civis.» (Branco, 2010: 37).

3. Continuidade, proximidade, dualidade

Os Corpos Militares com Funções de Polícia caracterizam-se pela natureza militar e versatilidade de funções, militares e policiais. As Gendarmeries, ao exemplo da Guarda Nacional Republicana, são ainda caracterizadas por três princípios: continuidade, proximidade e dualidade, (Branco, 2013). Os dois primeiros remetem-nos para a génese funcional das Gendarmeries, enquanto a dualidade é uma consequência.

A continuidade acolhe pressupostos, como: (i) o posicionamento institucional, pela permanente ligação entre as instituições militar e civil; (ii) a polivalência de funções, pela capacidade de transição entre as funções militares e policiais; (iii) a capacidade de desempenho funcional em ambiente instável.

A proximidade resulta da dispersão pelo território nacional, através de uma malha territorial. Esta implementação, enquanto “Força de quadrícula”, o conhecimento efetivo do terreno, da população e das infraestruturas, «(…) que, aliado à disponibilidade permanente que caracteriza o “gendarme” e conjugado com o princípio do aquartelamento, o torna muito próximo das populações.» (Idem: 207).

A dualidade é consequência dos Corpos Militares com Funções de Polícia coabitarem com as polícias. Deste princípio advém da não concentração de todo o poder policial numa única instituição. Bem como o reforçado do poder judiciário, quer no exercício do controlo da atividade policial, quer no exercício da direção da ação penal. Esta última, através da escolha do OPC a quem serão atribuídas, em concreto, as competências de investigação criminal.

V. MULTINATIONAL SPECIALIZED UNIT

A complexidade dos teatros de operações e as exigências operacionais ensinaram as instâncias de controlo formal internacional a apelar ao empenhamento de Forças internacionais com capacidades militares e civis.

No decorrer da Stabilization Force na Bósnia (1998), a OTAN identificou a necessidade de preencher o vazio que existia entre a componente militar e não militar, entre a atuação das Forças militares e da polícia civil, desarmada e sem capacidade para fazer cumprir a lei, the Security Gap (Paris: 2004).

A solução apontada foi a utilização de Corpos Militares com Função de Polícia (tipo Gendarmeries ou Carabinieri). A ideia foi de imediato acolhida pelos italianos, tendo os mesmos desenvolvido o conceito de Multinational Specialized Units (Carabinieri: 2003; Paris: 2004). Genericamente, o conceito MSU integra: (i) Unit – unidades constituídas de forma temporária, para cumprir uma missão, integrada numa Força militar, para atuar no âmbito de uma operação para a paz; (ii) Multinational – em virtude da sua composição ter por base Corpos Militares com Funções e Polícia de vários países; (iii) Specialized – enquanto ferramenta especializada dentro do instrumento militar que permite ao Joint Force Commander (JFC) atuar perante a Security Gap.

A OTAN, através das MSU, integra nas suas Forças uma capacidade especializada que lhe permite reorientar uma atuação de paz negativa para uma de Paz Positiva, recorrendo para tal à competência distintiva dos Corpos Militares com Funções de Polícia.

A GNR foi dotada com viaturas blindadas idênticas às usadas pela força de comando italiano onde se inseriu, a MULTINATIONAL SPECIALIZED UNIT. [4]

A GNR foi dotada com viaturas blindadas idênticas às usadas pela força de comando italiano onde se inseriu, a MULTINATIONAL SPECIALIZED UNIT.

VI. A GNR NA OPERATION IRAQI FREEDOM

1. Situação

Após o términus dos combates em maio de 2003, as Nações Unidas, através da resolução n.º 1438 e posteriormente da resolução n.º 1511, criam uma Missão de Imposição da Paz, apelando ao desenvolvimento de condições de segurança e estabilidade que permitissem o auxílio humanitário e a reconstrução do país. O Governo português decidiu participar na missão, mas deparou com um problema difícil, uma vez que o Presidente da República, enquanto Comandante Supremo das Forças Armadas, se recusou a permitir a atuação destas no Iraque. A solução foi simples. A decisão de um Governo que, depois da Cimeira das Lajes, estava apostado em juntar-se à coligação liderada pelos EUA foi o envio da Guarda, uma vez que esta organicamente dependia (tal como agora) do MAI e não da Presidência.

A 15 de julho de 2003, o Governo português, através da Port.ª n.º 1164, decide «(…) prestar apoio às forças da coligação em manutenção da paz e ordem no Iraque (…).», tendo fixado a duração do mesmo em seis meses, prorrogáveis por iguais períodos. O diploma qualificou o Iraque como um país do tipo “C”. Para o efeito foi constituída uma Força, denominada Subagrupamento ALFA, composta por um efetivo máximo de 140 militares;

No período compreendido entre 12 de novembro de 2003 e 10 de fevereiro de 2005, a Guarda Nacional Republicana manteve-se em solo iraquiano através de quatro contingentes.

2. Área de operações

A área de responsabilidade correspondia a toda a província de Dhi Qar, cuja capital é An Nassiriya. A província tem uma dimensão aproximada de 200 km por 140 km e cerca de 1,8 milhões de habitantes, sendo as principais cidades Ash Shatrah e Suq Ash Shuyukh.

3. As capacidades da companhia MSU da GNR

Analisando a capacidade (4) da companhia MSU da GNR verificamos:

Doutrina

A doutrina da OTAN, de emprego de uma Força militar com Funções de Polícia. (Carabinieri, 2003: 3-4; allegato A; NATO, 2001: 4-10, 4-11; 2010a: 3-9; 2010b: 2-8).

Organização

O Subagrupamento ALFA tinha na sua organização: comandante e 2º comandante, quatro Pelotões, sendo um de apoio e três de intervenção, uma Secção de Operações Especiais (SOE), uma Equipa de Inativação de Engenhos Explosivos Improvisados (EIEEI) e uma Equipa de instrutores.

Treino

Complementarmente à formação profissional adequada às Funções de Polícia, todos os efetivos tinham formação militar. A normalização da doutrina militar, através de conhecimentos operacionais e táticos necessários ao cumprimento das missões militares, foi determinante para garantir, nomeadamente, a “autotutela defensiva” perante qualquer ataque.

Material

O material era funcionalmente idêntico ao material italiano, quer no âmbito militar, quer no policial. Ambos os contingentes possuíam armas não letais/menos letais. Um fator decisivo foi a capacidade do sistema de transmissões/ comunicações. (GNR, 2010: 36)

Liderança

A cadeia de Comando da qual, da contingente português dependia, tinha no topo o Secretário de Defesa dos EUA, o comandante do Central Command (CENTCOM) e o comandante do Combined Joint Task Force. O controlo Operacional era exercido pela Multinational Division on South-East (MND-SE), através da Brigada Italiana, onde estava inserido Regimento MSU. O comando operacional era exercido dentro da cadeia de comando portuguesa, a que acrescia a experiência no exercício dos diferentes tipos de autoridade, militar e policial.

Pessoal

O recrutamento foi realizado com base no voluntariado. Após os exames auxiliares de diagnóstico foi elabora proposta de nomeação por escolha. (GNR, 2010: 14).

Todo o pessoal empenhado era militar, agrupados hierarquicamente em oficiais, sargentos e guardas/praças. A exceção ocorreu através da participação de um médico civil no primeiro, segundo e terceiro contingentes.

Os militares detinham experiência no desempenho de Funções de Polícia em Portugal, nomeadamente enquanto agentes da força pública e de autoridade, bem como de órgãos de polícia criminal.

Tabela 1: Efetivos da Guarda por contingente (Fonte: GNR 2010) [5]

Tabela 1: Efetivos da Guarda por contingente (Fonte: GNR 2010)

Ao nível do moral e bem-estar foi constituída uma “Comissão de Acompanhamento e Apoio das Famílias dos Militares em serviço no Iraque”.

Infraestruturas

O Subagrupamento ALFA ficou inicialmente na cidade de An Nassiriya, Base Libecchio e posteriormente no quartel de Camp Mittica, em Tallil, antiga base da Força Aérea Iraquiana. Este quartel distava da capital da província cerca de cinco quilómetros, no qual foram atribuídas ao contingente português cinco habitações de alvenaria que pertenciam aos Oficias da Força Aérea Iraquiana. (Cruz, 2010: 346)

Interoperabilidade

Contribuíram para a interoperabilidade, entre outros, os seguintes fatores:

(i) Emprego de Forças do mesmo tipo, Corpos Militares com Funções de Polícia;

(ii) Uniformização e normalização da doutrina militar OTAN, que permitiu a interoperabilidade de táticas, técnicas e procedimentos, operacionais e logísticos;

(iii) A organização modular e flexível (MSU), com base na orgânica típica comum aos países da OTAN;

(iv) Formação idêntica, ao nível militar e policial;

(v) Treinos conjuntos anteriores com as Forças italianas, consolidados durante a missão;

(vi) Material funcionalmente idêntico, de uma Força ligeira de infantaria e de Força de segurança, dispondo de armas não letais/ menos letais e de viaturas blindadas da mesma marca e modelo;

(vii) A clara atribuição de graus de autoridade: Comando Operacional, Controlo Operacional e Controlo Tático;

(viii) Constituição da Força com efetivo militar que integra os respetivos Corpos Militares nacionais, com experiência diária no desempenho de Funções de Polícia, numa comprehensive approach ao sistema policial e judiciário;

(ix) A presença de oficiais de ligação portugueses aos diferentes níveis e a partilha de informação;

(x) A interoperabilidade do sistema de transmissões português complementarmente com o centro de comunicações comum às Forças italianas, romenas e portuguesas, permitiu incrementar o comando e controlo, bem como a partilha de informação.

4. Atividade Operacional Desenvolvidas no Iraque

Durante a missão, foram atribuídas ao Subagrupamento ALFA as seguintes operações/ tarefas policiais (Cruz, 2010: 347-349; Silvério, 2004: 3-5):

Guardas

Complementarmente às outras missões, foram realizadas guardas de polícia aos locais onde a Força portuguesa estava estacionada. Primeiro em Libeccio e posteriormente, na Base Tallil, Camp Mittica, tendo por objetivo garantir a segurança das instalações e das pessoas 24h por dia.

Radio On Call (ROC)/ Quick Reaction Force

Neste tipo de serviço era nomeada uma Força que se constituía como reserva, podendo aquele ser executado de forma estática ou dinâmica. A primeira consistia em manter uma Força de prevenção, em Camp Mittica, na Base de Tallil: para responder a situações inopinadas, normalmente relacionadas com graves alterações da ordem pública, em reforço da policia local ou em substituição desta; ou preparado para dar apoio a uma força que estivesse em missão no exterior. Na segunda era constituída como apoio, nas proximidades da localização de uma Força a que fosse atribuída uma missão. (GNR, 2004)

Manutenção e restabelecimento da ordem pública

Estas operações visam restabelecer a lei e a ordem como garante do estado de normalidade da vida social (GNR, 2004). Foram várias as situações de intervenção da GNR, sempre com sucesso.

Check-point/ barragem de estrada

Esta operação era realizada para garantir o controlo e fiscalização de viaturas, indivíduos e coisas transportadas, relacionados com crimes graves (GNR, 2004), no caso em concreto dos crimes de tráfico de armas e de obras de arte.

Escoltas

Operação executadas para garantir a segurança do deslocamento de entidadesno exterior da Unidade, nomeadamente: altas entidades portuguesas que visitaram o contingente português, o comandante e outros militares da MSU, os instrutores, entidades do exército italiano, detidos e outras.

Segurança física

Serviço realizado para garantir a «(…) segurança, a locais, áreas, itinerários, instalações ou entidades (…)» (GNR, 1996b: IX-106), o que ocorreu na província de Dhi Qar, nomeadamente aquando dos processos eleitorais locais e nacional.

Inativação de engenhos explosivos (IEE)/ Explosive Ordnance Disposal (EOD)

No âmbito deste serviço, pela sua similitude, foi estabelecida uma forte ligação entre a Equipa Portuguesa e a Equipa EOD (Explosive Ordnance Disposal) do exército italiano. Desempenharam tarefas de destruição de substâncias explosivas apreendidas em operações policiais, inativação de engenhos explosivos, execução de reconhecimentos preventivos de explosivos, elaboravam pareceres técnicos relacionados com o serviço. Nesta área, o serviço mais relevante ocorreu a 10 de novembro de 2004 com a neutralização de um veículo-bomba com cerca de 65Kg de explosivos.

Operações de risco elevado (Golpe de mão e Busca)

Operações policiais dirigidas a atividades criminosas violentas, que consistiam na procura de objetos relacionados com a prática de crime, ou que lhe possam servir de prova, e que devam ser apreendidos, ou de pessoas que devam ser detidas (GNR, 1996b: IX-37-59). Foram efetuadas mormente com os efetivos da Secção de Operações Especiais. Compreenderam missões de entradas de alto risco em residências para cumprir mandatos judiciais, segurança a altas entidades.

Revista feminina

Na cultura árabe o contacto entre um homem e uma mulher tem padrões sociais bem definidos. Por forma a salvaguardar a segurança da Força, sem ostracizar, transmitindo simultaneamente os valores e uma cultura policial moderna, foi criada a Equipa de revista feminina, composta por três militares do género feminino, única em todo o Regimento MSU. Como missão, revistavam sempre que necessário as mulheres iraquianas. Essencialmente eram duas as situações: diariamente revistavam as mulheres iraquianas assalariadas que trabalhavam em Tallil; sempre que necessário em apoio às operações policiais de todo o Regimento MSU.

Serviço Auto GRILL

Consistia em garantir o regular abastecimento de combustível à população, evitando a inflação dos preços e o contrabando. Era verificada a quantidade de combustível existente nos depósitos, comparada a quantidade registada como saída com a registada como vendida, o preço de venda e a forma como estava organizado o serviço (GNR, 1996b: I-5 – I-12).

Patrulhas

Eram realizadas patrulhas apeadas e em viatura, como forma de policiamento de proximidade, destinadas à proteção de pessoas e bens, velando pelo cumprimento do mandato legal, com vista a garantir normal funcionamento da vida em sociedade. Foi desenvolvido com caráter essencialmente preventivo, constituindo uma excelente forma de obtenção de informação (GNR, 1996b: I-13). A execução do patrulhamento tinha dois grandes objetivos: monitorizar e aconselhar a polícia local quanto às Funções de Polícia; salvaguardada a segurança destes, bem como da província e da cidade.

Reforma do Setor de Segurança

Na província Dhi Qar, a polícia local e a polícia de trânsito não eram respeitadas e não tinham formação técnica adequada. Sob a orientação e o programa definido pela Autoridade Provisória da Coligação, a polícia foi reorganizadas, treinada e monitorizada pela MSU. Na Reforma do Sistema de Segurança a participação portuguesa desenvolveu-se em três áreas: criar condições materiais/ físicas para o desempenho das Funções de Polícia, concomitante com a formação e o mentoring.

Formação/ treino

A formação era ministrada por portugueses e italianos. A Equipa de instrutores portugueses era constituída por três militares, um sargento e dois guardas, que se deslocava diariamente para as instalações da polícia de trânsito, em An Nassiriya, onde era ministrada a formação. Entre os conteúdos programáticos encontravam-se: direitos do homem, direitos dos detidos, ética policial, técnica policial, etc.;

Após a formação em sala de aulas, a polícia voltou a desempenhar Funções de Polícia. Numa primeira fase a polícia era acompanhada pelos formadores e posteriormente pelas patrulhas da MSU, verificando-se melhoria na qualidade do serviço policial e o incremento do respeito da população para com a polícia.

Os portugueses colaboraram de forma ativa na formação da polícia iraquiana, tendo atingido só no 2º contingente 1.800 polícias formados.

Mentoring

O serviço tinha como objetivo verificar as condições de trabalho, analisar as suas carências e fazer um levantamento do número de polícias por esquadra, conferir os respetivos cartões de identidade e o armamento existente, designadamente às esquadras que se situavam nas localidades de Al Islah, Sayyid Dakhil, Al Fuhood, Al Fudlija e Al Tar. Foi ainda monitorizada a entrega de uniformes e armamento. Após criadas as condições materiais para o desempenho das Funções de Polícia, ministrada a formação, o enfoque direcionou-se para o etos policial e os respetivos procedimentos. Fator determinante para desenvolver esta missão foi o comprehensive approach ao sistema policial e judiciário por parte da GNR.

Missões militares

A GNR não foi pra o Iraque «exercer tarefas militares», nem o podia seguramente ter feito pelos motivos políticos internos atrás aduzidos. Contudo, como advém da sua formação militar, sempre que foi atacada exerceu a “autotutela defensiva” com base nas técnicas, táticas e procedimentos militares ou quando era atribuída uma missão essencial à segurança da Força (5) (6). Entre as quais cumpriu:

Missões de vigilância e de ligação entre forças fixas ou móveis – patrulhas anti morteiro

A partir dos incidentes de 14, 15 e 16 de Maio de 2004, foram determinadas patrulhas anti morteiro, cujo objetivo era evitar ataques com morteiros. Este tipo de serviço consistia em patrulhas realizadas em viatura, efetuadas no perímetro exterior da base de Tallil, num raio de 5 km. Foram detetadas por patrulhas portuguesas pelo menos duas posições de lançamento de morteiros/ foguetes;

Missões de operações especiais

Aquando dos incidentes de 14, 15 e 16 de maio de 2004 a SOE auxiliou na exfiltração de unidades sujeitas a fogo adversário,

«Under constant fire by 100 militiamen, Carabinieri parachutists and Portuguese gendarmes arrived at Libeccio base in a column of 16 military vehicles and 2 Centauros to facilitate evacuation.» (Cappelli, 2005: 60)

sendo ainda empregue em 5, 6 e 29 de agosto de 2004;

Missões no âmbito da segurança de áreas da retaguarda

Aquando dos incidentes de 06 de abril, a 14, 15 e 16 de maio, 5 e 6 de agosto;

No quadro seguinte apresentamos uma proposta taxinómica em que conjugamos as operações/ tarefas policiais desempenhadas pela Guarda no Iraque, com o respetivo vértice do triângulo da violência e a correspondente Security Gap.

 

Tabela 2 – Conjugação das tarefas da GNR no Iraque com o triângulo da violência e a Security Gap. [6]

Tabela 2 – Conjugação das tarefas da GNR no Iraque com o triângulo da violência e a Security Gap.

Verificamos que as tarefas que a GNR desenvolveu tinham influência no triângulo da violência, nomeadamente nos vértices da violência estrutural e direta. Não obstante se verificarem menos tarefas relacionadas com a violência cultural, são estas que vão perdurar no futuro pelas sementes que lançaram.

No que concerne à Security Gap verificamos que a atuação da GNR contribuiu para debelar a institutional gap e a enforcement gap. Esta constatação resulta de dois fatores: no auxílio da GNR à consolidação da estrutura social, como resulta do seu trabalho diário em Portugal, numa comprehensive approach ao sistema de segurança e legal; a continuidade no desempenho funcional da Guarda que advém da polivalência de funções, pela capacidade de transição entre as funções militares e policiais, e do posicionamento institucional, pela permanente ligação entre a instituição militar e a instituição civil. Verifica-se que a GNR não foi empenhada para preencher a deployment gap, embora estivesse preparada para o efeito.

O Subagrupamento ALFA caracterizava-se por ser uma Força de intervenção rápida motorizada, que estava permanentemente disponível para responder às exigências operacionais e a impor-se de uma forma proficiente às ameaças à paz, no âmbito das missões que lhe eram atribuídas (Silvério, 2004: 5).

O contingente português, em todo o período que esteve no Iraque, manteve um alto nível de operacionalidade e de disponibilidade. A proficiência aliada ao facto de ter sido alvo de vários ataques mas com zero baixas, foi motivo de elogio público de várias instâncias internacionais e nacionais, que muito dignificaram o país e a Guarda Nacional Republicana. Esta foi a primeira unidade portuguesa condecorada com Medalha de Ouro de Serviços Distintos com Palma, por ação em missões de apoio à paz (7) .

«Orgulhamo-nos do papel que o Subagrupamento Alfa da GNR tem desempenhado neste processo (…)Portugal demonstrou, uma vez mais, que é um contribuinte relevante para a manutenção da paz e da segurança internacionais (…)» Pedro Santana Lopes, Primeiro-ministro (8)

Armas do Sub-Agrupamento Alfa da Guarda Nacional Republicana, a força de escalão companhia que permaneceu no Iraque de 2003 a 2005. [7]

Armas do «Subagrupamento ALFA» da Guarda Nacional Republicana, a força de escalão companhia que permaneceu no Iraque de 2003 a 2005. Ao contrário das unidades expedicionárias do Exército, as da GNR, num mesmo teatro de operações, mesmo que sejam rendidas, mantém a designação. Em Timor-Leste actuou o «Subagrupamento BRAVO» durante vários anos.

VII. CONCLUSÃO

A Guarda Nacional Republicana nos últimos anos tem sido chamada a intervir em vários conflitos um pouco por todo o mundo.

Esta participação foi sempre após resolução habilitante, mas não enquadrada numa Força multinacional da OTAN(9). Contudo, já atuou sob doutrina da mesma para o emprego de forças constituídas, com base em Corpos Militares com Funções de Polícia, as Multinational Specialized Units.

A Guarda quando integrada numa organização internacional habilitada, para o uso da força, opera com capacidade no campo militar e policial e de continuidade entre os dois. A continuidade é assegurada pela permanente ligação entre as instituições militar e civil, pela capacidade de transição entre as funções militares e policiais, bem como pelo desempenho destas últimas em ambiente instável.

A formação assegura a integração da doutrina militar em articulação com as FFAA, sendo o garante da preparação permanente para missões militares e missões internacionais conjuntas, onde apenas se altera o âmbito territorial de atuação, mantendo-se a comprehensive approach ao sistema de segurança e judicial.

Enquanto Corpo Militar, a sua capacidade permite-lhe ser uma Força especialmente apta a ser empenhada, em permanência, em todo o tipo de conflitualidade. Desde o tempo de paz, de normal funcionamento das instituições democráticas, até às operações de imposição da paz, nos países qualificados de classe “C”, no cumprimento das Funções de Polícia.

A GNR apresenta uma capacidade única para fazer face, no desempenho todo o espetro das Funções de Polícia, à violência direta, estrutural e cultural, com a possibilidade de o fazer em ambiente instável, como advém da sua formação militar, conferindo-lhe uma competência distintiva. Paradoxalmente, de alguma forma, a recusa do então Presidente da República em ver o País envolvido no que considerava uma intrusão ilegal, veio dar à GNR a oportunidade de mostrar a sua mais-valia no domínio militar, bem como, claro está, no policial.

A Guarda apresenta a capacidade para auxiliar outras instituições, designadamente as judiciais, as militares “propriamente ditas” e as de Polícia em sentido estrito e estreito, a melhor preencher a Security Gap, contribuindo para erradicar a violência, contribuindo para a Paz, o que decorre: (1) capacidade para ser projetada com o instrumento militar e atuar em conjunto com o mesmo desde a primeira fase do conflito (deployment gap); (2) capacidade para garantir a continuidade institucional militar/ civil e funcional militar/policial, em ambiente instável, sem quebras ou sobressaltos, com recurso à força de forma legal (enforcement gap); (3) capacidade decorrente das suas atribuições diárias no desempenho das Funções de Polícia, no âmbito da sua missão no sistema de segurança, com a permanente ligação ao sistema judiciário, com os diferentes níveis de autoridade, o que lhe permite possuir uma comprehensive approach na promoção e construção do sistema de segurança (institutional gap).

A doutrina de atuação da OTAN para preencher a Security Gap são as Multinational Specialized Units. A Guarda Nacional Republicana tem todas as características necessárias para constituir ou integrar uma MSU: é um Corpo Militar e desempenha a Função de Polícia, tem capacidade de atuar numa operação de imposição da paz superando a Security Gap e tem experiência prática de atuação sob doutrina MSU.

A Guarda Nacional Republicana é um instrumento credível no apoio à política externa do Estado Português nas operações de imposição da paz, orientada para o statebuilding na criação de um jus post bellum (Silvério, 2014). Para isso contribuem a sua genética, Corpo Militar com Função de Polícia, e no caso do Iraque, quando chamada a intervir num dos cenários mais devastadores a nível internacional, a Guarda mostrou-se estar ao nível das exigências. Cumpriu as Funções de Polícia que se lhe exigia e perante vários ataques inopinados e em missões planeadas mostrou estar preparada para lidar com elevados níveis de violência, tendo tido ZERO baixas. Um feito notável.

Insígnia criada para uso no uniforme dos militares da GNR que cumpriram uma ou mais missões no Iraque [8]

Insígnia criada para uso no uniforme dos militares da GNR que cumpriram uma ou mais missões no Iraque

Notas:

(1) Art 1º, al c) da Portª. nº 87/99, de 30 de dezembro

(2) Graves condições de salubridade – Art.º 2º e 3º da Portª. nº 87/99, de 30 de dezembro

(3) Na antiga URSS, estas Forças eram apelidadas como “tropas do Ministério do Interior”.

(4) «(…) conjunto de elementos que se articulam de forma harmoniosa e complementar e que contribuem para a realização de um conjunto de tarefas operacionais ou efeito que é necessário atingir, englobando componentes da doutrina, organização, treino, material, liderança, pessoal, infraestruturas, interoperabilidade, entre outras.» (MDN, 2011: 4), (DOTMLPI).

(5) Art.º 150º do RGSGNR, Despacho n.º 10393 do Comandante-geral GNR, de 05 de maio de 2010, DR,2.ª série – n.º 119 – 22 de Junho de 2010

(6)Vale a pena, neste quadro comparar as missões da Guarda no Iraque, com as das Forças Especiais portuguesas no Afeganistão (Pires, 2011).

(7) Diário da República de 16 de dezembro de 2005, o Aviso n.º 11 435 (2ª série)

(8) Eleições no Iraque, Público, 30 de janeiro de 2005

(9) Cfr GRAÇA, Duarte da (2012)

 

 

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(1) Art 1º, al c) da Portª. nº 87/99, de 30 de dezembro

(2) Graves condições de salubridade – Art.º 2º e 3º da Portª. nº 87/99, de 30 de dezembro

(3) Na antiga URSS, estas Forças eram apelidadas como “tropas do Ministério do Interior”.

(4) «(…) conjunto de elementos que se articulam de forma harmoniosa e complementar e que contribuem para a realização de um conjunto de tarefas operacionais ou efeito que é necessário atingir, englobando componentes da doutrina, organização, treino, material, liderança, pessoal, infraestruturas, interoperabilidade, entre outras.» (MDN, 2011: 4), (DOTMLPI).

(5) Art.º 150º do RGSGNR, Despacho n.º 10393 do Comandante-geral GNR, de 05 de maio de 2010, DR,2.ª série – n.º 119 – 22 de Junho de 2010

(6)Vale a pena, neste quadro comparar as missões da Guarda no Iraque, com as das Forças Especiais portuguesas no Afeganistão (Pires, 2011).

(7) Diário da República de 16 de dezembro de 2005, o Aviso n.º 11 435 (2ª série)

(8) Eleições no Iraque, Público, 30 de janeiro de 2005